Resolvi respirar da turba e sai para a calçada. Não
sei o que fazer, na minha idade, em evento de jovens. Ainda me convidam por
conta de anos no magistério superior. Ela estava ali com um sorriso aberto que
me magnetizou. Comprimentos, comentários sobre o tempo, a lua, a rua...
–
“Ninguém se torna vegano impunemente”, desferiu a mocinha a certa altura da
nossa conversa, por conta de uma pergunta nesse sentido. Que bonitinha, pensei
comigo.
– “Parei de fumar, também”,
acrescentou ela. Perguntei-lhe se fumar comprometia a condição vegana.
– “Não, necessariamente. Eu
acho que acaba sendo uma consequência”.
Não entendi, mas não disse
nada.
Ela sorriu. Era a coisa mais
linda de se ver. Há poucos metros de nós estava a sua “galera”, como dizem,
conversando alegremente, mas ela ficou ali, sorrindo para mim.
– “Um dia, ao cortar um bife
senti um tremor nas mãos e a carne me desceu amarga”. Enquanto falava ela
olhava as duas mãos que levou a altura do rosto. Trazia uma bolsa de pano
branco à tiracolo. Coisa muito simples.
– “Minha mãe percebeu e não me
obrigou mais a comer carne. Depois foram os outros produtos de origem animal
que eu me livrei: o ovo, o leite, o queijo, o mel...”
– “Mas você está muito magra”,
rebati, mas ela pareceu ignorar o meu comentário. De fato não estava magra. Era
perfeita. Parecia totalmente envolvida com a conversa. Só tinha olhos para mim.
Pensei comigo: “vai dar certo”.
– “Foi nesta época, eu tinha
doze anos, que me deu vontade de sofrer”. Risos. “Toda oportunidade que me
aparecia ia ver os animais em sítios e fazendas, porcos, vacas... e tentava
contato com eles. Impulso irresistível de abraça-los. Tentava não chamar a
atenção das pessoas, porque chorava muito por vê-los ali escravizados, sendo
torturados e aguardando a inevitável morte”.
– “Nossa, que exagero”.
– “Pois é”, continuou ela,
“percebi minha solidão e me acostumei a ela, afinal eu tinha uma causa maior”.
Quando ela disse a última
frase tive um impulso indistinto de lembrança. Talvez já a conhecesse.
– “Aos poucos, fui encontrando
quem partilhasse os mesmos ideais e a utopia se revelou esperança”.
Novamente, a impressão que já
a conhecia. No entanto, fiquei estudando uma maneira de concretizar a
aproximação. Era tudo o que me interessava. E sem que eu esperasse, ela me
abraçou. Percebi que não precisaria adiantar nada, nem carregar a culpa de
seduzir alguém pouco mais que uma adolescente. Parecia tão segura, tão
consciente. Ela se afastou um pouco, segurou a minha mão, tinha uma fugidia
lágrima no rosto.
– “Apareça lá em casa. Faz
exatos dez anos que você nunca mais nos visitou”.
Exatamente, neste momento, que
recuperava a lembrança, estacionou ao nosso lado um carro branco e saiu dele um
velho amigo que, de fato, há muito tempo eu não visitava. A jovem vegana era
sua filha. Eu praticamente a vi nascer e acompanhei o crescimento, pelo menos,
nos dez primeiros anos de vida. Ele desceu do carro e reforçou o convite para visita-lo.
Fiquei ali um tempinho, vendo o carro dobrar a esquina. Ora, pensei comigo,
retornando para casa: “Deu certo, um abraço antes de morrer”. Conforto
inexplicável.