quarta-feira, 30 de dezembro de 2015

O AMOR E A SANTA

As palavras, depois de libertas, brincavam no ar: leves ou pesadas, brilhantes ou obscuras, projetavam-se umas sobre as outras por força da musicalidade ou dissonância...
 Ela sorria, ou baixava os olhos, encantada ou resignada...
 Um ritmo inusitado, uma construção brusca, aliterações e assonâncias... Tudo ela bebia com os olhos de quem sente que o desenrolar da vida escapa a qualquer sentido, mas vale pela procura.
 As reticências, por vezes, lhe davam arrepios de loucura.
 Não vivia maquinalmente. Fazia o que tinha de fazer para escapar das cobranças, mas ainda tinha um carinho por cada detalhe do cotidiano, sacralizava o momento. Absorveu um código ético de passividade e aceitação, mas não de renúncia.
Lia, lia e lia.
Poemas eram-lhe de seu agrado, mas arrastava domingos com Proust, Dostoievski, Goethe... O que mais lhe apetecia, no entanto, eram histórias ouvidas acidentalmente nas ruas, no ônibus... uma notícia de jornal, um crime passional... Imediatamente ela supria, numa tentativa de significação, todos os detalhes do ocorrido: espaço, tempo, memória, personagens, enredo... Mesmo que tudo não fizesse o menor sentido, mesmo que tudo se esfacelasse numa procura inútil.
Escrever, não escrevia.
Fora impermeável ao casamento. Vivia em uma casa minúscula na periferia, com a mãe. Perderá o pai ainda criança. Filha única.
Nunca se entregou a longas amizades. Acolhia com ternura aqueles que necessitavam falar. Ouvia-os com complacência. Não sabia dar conselhos, mas falava com tanta ternura que umedecia os corações ressequidos.
Era uma santa.
Sua imagem era um descanso para os olhos, mesmo não sendo a beleza da Manchete. Os homens não se aproximavam dela com interesses que não fossem da esfera das obrigações cotidianas.
Trabalhava solitariamente num escritório de contabilidade, preenchendo grossos livros de escrituração mercantil, mas nutria um desejo secreto de ser uma garçonete em um bar mundano que lhe oferecesse histórias da vida que afinal não fazia o menor sentido.
 Chorava às vezes, sem razão, e isto a fazia muito feliz, apesar de extenuá-la.
 Quando lhe falavam pesadamente, ela fechava os olhos e uma chuva de pequenos pontos de interrogação paralisava o eventual interlocutor que não entendia o que tinha acontecido. Foi assim quando acidentalmente entrou num área proibida, ignorando por distração uma placa de proibição. O homem rude que a advertiu gritando, quando a viu de olhos fechados ficou tão triste que ela precisou pousar a mão na sua cabeça para que ele recuperasse a voz.
Não gostava de contato físico. Imobilizava com os olhos os que tentavam abraça-la, mas no seu olhar havia tanta ternura que acalmava qualquer desejo expansivo de afetividade.
Nunca fora vista comendo em público.
Dizem que morreu de amor.

Numa tarde, deixou-se ficar no jardim, próximo ao escritório, quando alguém se aproximou dela e ficou ali sem dizer nada. A música que ela ouviu, descendo das árvores, acordou nela os sentidos mais profundos: de repente caiu no virgem coração da santa o incomensurável peso da vida.

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