Dormi profundamente a ponto
de acordar bem humorado no domingo e me sentir com disposição de ir à feira
livre: os sentidos todos acordados. Na verdade, a feira a que me refiro não é
tão livre, como aquelas da minha infância que se fazia na rua. Está é protegida
do sol por uma armação de ferro e concreto, coberta com zinco e ocupa o espaço
de um quarteirão. Os feirantes não têm que armar a barraca, mas apenas
distribuir sua mercadoria nos espaços a eles reservados. Uma liberdade
relativa.
Na
verdade, não era comprar que me levava, às vezes, àquele ambiente, misto de
comércio e natureza, mas um sentimento de harmonizar as duas coisas, o cheiro
das verduras e frutas, o colorido dos vegetais, a simplicidade dos feirantes
que chegava a ser de uma grosseria suave. Entende-se o sentido da liberdade
quando se está preso. Havia, na verdade, mais de natureza do que de comércio,
ou pelo menos mais de ruralidade em detrimento à urbanidade. Por toda parte um
espetáculo aos olhos, a cada canto uma surpresa como se as frutas também
olhassem os homens.
Deixei-me
entreter pelo passeio, então, com esse espírito de me libertar da necessidade
de comprar fosse o que fosse. Aliás, trazia o desejo mesmo de negar os
paradigmas consumistas. Vi, então, sentando a um canto, um homem robusto,
vestido simplesmente, entalhando um pedaço de madeira de forma circular como um
cabo de ferramenta. As mãos, de uma agilidade incrível, parecem que se moviam
desarticuladas do resto do corpo. Ao verificar o quadro todo notei, também, que
o homem não olhava às próprias mãos, como se elas soubessem o que fazer
sozinhas. Aliás, apesar da manhã radiosa havia pouca luz naquele canto, dada à
particularidade da construção. Não vou entrar em detalhes, porque não quero um
conto naturalista.
– Examine
isto?
Assustei-me.
Era um jovem barbudo que me falava. Tinha gentileza nos olhos e uma pequena
escultura nas mãos. Era uma imagem de Jesus.
– Foi você que
entalhou?
– Não, eu
somente a pintei. O entalhe é de Bart. E me apontou o homem de mãos ágeis.
A pequena
imagem de Jesus era um trabalho de uma precisão impressionante.
O jovem
barbudo, com gentileza nos olhos, não estava mais ao meu lado. Aproximei-me
então de Bart para conversar, mas não cheguei a dizer nada e ele simplesmente
ignorou minha presença, envolvido no que estava fazendo. Ao seu lado havia
outra escultura, era esta somente do rosto de Jesus, uma espécie de máscara sem
nenhuma pintura.
Bem, eu nem
sei dizer por que associei aquela imagem também a Jesus, porque não havia nada
em comum com a figura europeizada, consagrada pelos renascentistas, que somos
acostumados a entender como sendo o rosto de um judeu, submetido ao escaldante
sol da Galileia. Tomei-a nas mãos. Havia alguma coisa de rusticidade, que
transcendia a própria imagem e dava àquele Cristo um ar quixotesco e
apaixonado. E me veio um sentimento de calma e desespero ao mesmo tempo. Não
sei quanto tempo fiquei ali, com a pequena máscara nas mãos, apreciando os
contornos duros. Lembrei-me das imagens barrocas do Aleijadinho, mas nesta
havia um elemento de simplicidade que captava a dor de um Cristo que, talvez,
não teria o consolo da paz eterna, que trouxesse em si toda a tragédia humana
do desespero da busca. Não havia a tradicional mansidão no olhar, mas uma
profunda perturbação. Muitos anos depois, a imagem daquela máscara penetraria
na minha alma e se tornaria verdadeiramente inspiradora da vida e aquele
domingo inesquecível.
– Então, vai
levar? - Perguntou-se o jovem barbudo.
– Eu queria essa
máscara.
– Ainda não
está terminada.
– Mas eu não
posso compra-la assim mesmo, sem que esteja terminada.
Fiquei sem
resposta.
– Este
escultor enxerga para além dos olhos - argumentei, tentando justificar o meu
desejo de comprar a máscara.
E o moço que
parecia o empresário do escultor respondeu, para meu espanto:
– Sim, meu
amigo, ele é cego.