– Que foi, está nervoso?
Silva entrará pouco
antes, no bar do Niversino, sentou-se sem me cumprimentar, lançando-me um olhar
de mau dia. Examinou a mesa e foi até o garçom. Voltou com um copo, encheu de
cerveja que já ia pela metade. Pouca gente no lugar. E despencou a falar:
– Há uma ideia disseminada da existência de um
segmento da burguesia, digamos assim, ortodoxos que lutam para se manter,
aprioristicamente, uma separação de castas na sociedade, mas eu não sei, não
sei no que acreditar. O pensamento liberal raciocina por esse viés, também,
fiel á lei do mercado. Ouvi de uma senhora muito respeitável uma esdruxula
argumentação, e ela disse isto na cara dura, que em outras circunstâncias
(tempo histórico) ela poderia ter três empregadas pelo preço que agora só
poderia pagar por uma, e tinha ainda as despesas trabalhistas. E argumentou
convicta: “então, a coisa não piorou?” Eu não soube como responder, porque ela
tirava essa execrável argumentação do fundo do seu piedoso coração de mãe e avó,
vitoriosa na educação dos filhos e no cumprimento de suas obrigações religiosa
e cívica. Mas, intimamente remoí a dolorosa conclusão de que ela não se importa
com a corrupção desde que seja fruto da burguesia a que pertence e possa ter
três empregadas pelo preço de uma e dar emprego ao povo.
As últimas palavras ele disse de uma maneira
exasperada que me deu até medo e chamou a atenção dos demais clientes.
– Calma, do que adianta e tua indignação. Fica
frio. Bebe ai, senão a cerveja esquenta.
Silva me fuzilou com o olhar. Abaixou a cabeça por
uns instantes, esvaziou o copo num gole e, enquanto o enchia novamente e
acenava para o garçom avançou no seu discurso, agora mais calmo. O garçom ficou
parado ali, ouvindo:
– Sim, foram tantas experiências ditatoriais, um
processo cíclico, que não permitiu um amadurecimento da democracia e penso
mais, criou-se estruturas psicológicas doentias. Isto aconteceu em diversos
períodos da história como foi o caso da ascensão de Hitler. É agora temos um
segmento da sociedade que se coloca acima das instituições. Trata-se de uma
burguesia elitista, autoritária, reacionária e que se realiza distinguindo
castas na sociedade. O que eles gostam mesmo e de poder fazer caridade,
mantendo a senzala.
O garçom, também, estranhou o tom com que Silva
falava. Por fim, comentou sorrindo enquanto deixava a cerveja:
– Espero que não seja minha culpa.
Havia tanta sinceridade em suas palavras que o ridículo
da situação foi coberto por uma atmosfera outra, mesmo porque Silva, já mais
calmo, permaneceu com o copo vazio, meio que alheio. Por fim, disse:
– Não
há culpa individual. Talvez seja até um condicionamento tolo falarmos das
nossas elites retrógradas de tanto que tal assertiva foi propalada aos quatro
ventos, não é? Mas o fato é que fomos o último país, depois de Portugal e dos
Estados Unidos, a se livrar da mácula da escravidão. Sem contar a história do
latifúndio, do coronelismo e do voto de cabresto, dos currais eleitorais etc.
Talvez o que estejamos vivendo seja resquício dessa tradição cultural de
dominação, forças arquetípicas em que não há uma evidência óbvia, mas trazem
subjacente uma saudade dos estamentos sociais. Só há uma maneira, aliás, de
identificar culpados: a autoconsciência. Acabo de descobrir que a culpa é
minha.
Riram.
Silva
ficou em silêncio, encheu o copo, mas não bebeu. Recostou-se na cadeira
respirou fundo. O garçom procurou consolá-lo:
–
Não fique triste seu Silva. Põe na mão de Deus que ele resolve.
Aprovei
as palavras do garçom com um sorriso, mas não era o teor do seu discurso que eu
ratificava, mas a benevolência, a amorosidade, a paz. Os olhos de Silva brilhavam
e ele disparou eufórico, chamando a atenção de todos.
– Sim!
A culpa é dos deuses!
Novamente
o garçom:
–
De Deus, seu Silva, mas Deus nunca tem culpa. São os nossos pecados... Reze que
a coisa melhora.
Houve
um burburinho geral de aprovação. Silva levantou-se como que pronto para a
luta, apoiou-se na mesa, olhou para mim e depois para o garçom e disse como
quem descobre a verdade:
– Submissão à Moira, nas máscaras circunstanciais da Ananké.
Silêncio geral.
Alguém gritou:
– Mas que
diabo você está falando ai, Silva.
Estrondosas
risadas. Silva sorriu e concluiu:
– Eu quero
mais cerveja.