Tarde
de domingo, anos passados, um tanto quanto cansado do papel e do vídeo do
computador deslizei, como sempre faço, para a sinuca e a cerveja no Bar do Niversino.
Nem precisava dizer que se trata de um ambiente muito diferente ao da
Universidade. No bar, a verdade científica cai como uma inutilidade justamente
pelo que valorizamos tanto na academia: a abstração. Ora, como João Antonio
diria (não sei se ele disse): a sinuca é a vida. E a vida te solapa em toda a
sua inteireza incompreensível, na medida em que se apresentam situações em que
tudo que se há para dizer pode ser resumido àquela frase do celebre personagem
de Suassuna: “não sei, só sei que foi assim!” O que narro, aqui, portanto é a
mais lídima verdade, numa tentativa, bem sei que inócua, de se libertar da
interpretação ideológica.
Quando
cheguei o jogo já havia começado. Atrasei-me. Ar pesado. Olharam-me com
discrição, os quatro homens robustos em torno da mesa, e me cumprimentaram com
respeito que eu interpreto principalmente pelo fato de ninguém me chamar de
professor. Homens fortes e sérios, desse que falam de frente e quando falam
olham nos olhos. Olhar incisivo que requer respeito e hombridade. O que não
transparecia para quem não está acostumado com tal ambiente, mas para mim era
óbvio, é que estavam todos muito bêbados como nunca vira antes. Mas vamos lá: “vamos
jogar o jogo”.
“Vamos compor um
manifesto”, disse-me um deles “e queremos que você o redija”. Fui tomado de
grande surpresa. O jogo havia começado. Ora, eles estavam me pedindo justamente
o que eu não tinha a menor disposição em fazer. Quando tentei esboçar um gesto
de negação veio o Niversino com um tom mais sério do que de costume, dando-me a
entender a gravidade da situação e me deixou um caderno amarfanhado e uma
caneta. E me pus, na minha tarde de domingo e sinuca, a escrever o documento
mais surreal da minha experiência de ficcionista, porque era verdade.
O texto que se segue, por
fim, só têm de meu alguns adjetivos que inseri para não cair em repetições inadequadas
e uma certa organização das ideias, tendo em vista que, por vezes, mais de um
deles me falava ao mesmo tempo. O tom das falas era de veemência e austeridade,
combinadas com um claro desequilíbrio por conta da embriaguez:
Vamos
deixar de orgulho da virilidade inabalável e urgentemente aprovar a lei Chico
da Penha (não pude conter o riso). É verdade. Não é para rir não. A situação é
deveras preocupante e abala os alicerces da masculinidade, conferindo-nos a
condição de capacho. A realidade não é o que parece, mas tudo uma armação
feministoidemente construída e apoiada pela mídia, num processo de articulação
em que se unem todas as minorias raciais e sexuais, com apoio da comunidade
evangélica, das religiões afro-brasileiras e até do Papa. Está nisto,
inclusive, um condicionamento coletivo que ameaça a língua semanticamente: ora,
quando se diz “violência masculina” entende-se violência cometida pelo homem,
mas quando se diz, em qualquer contexto, “violência feminina” não se entende,
como deveria ser, violência cometida pela mulher, mas num manobra que ameaça
qualquer coerência, entende-se violência contra a mulher. De qualquer forma, o
homem paga o pato e todos os demais representantes da fauna e da flora. Em
qualquer situação a mulher sempre é a vítima e o homem o culpado. Estamos
indefesos contra um complô que desce às esferas do inconsciente coletivo. E
nesse contexto a desculpa da tensão pré-mestrual é a mais leve. A condição
masculina, na verdade, é de opressão e violência por parte do que sempre
denominamos erradamente como “sexo frágil”, porque homem não bate em mulher,
mas temos que nos defender de alguma forma sob pena de ameaça à extinção da
espécie. Vamos ser realistas: nós nos tornamos o sexo frágil tendo em vista a
revolução da palavra que cria verdade quando insistentemente repetida, como,
aliás, Hitler praticou insistentemente. Vivemos numa sociedade tomada por
infinitos e ferozes ditadores de saia. Até se defender de mulher é perigoso. Há
muitos casos, como o de um lutador de Box, que ao erguer o braço por impulso de
se proteger de uma vigorosa bolsada (ataque com uma bolsa de mulher) que voava
ao seu nariz causou o retorno da referida arma ao rosto da atacante. O
resultado foi um quase imperceptível sinal na pequena testa daquela que acabou
se tornando a vítima! Verdade! A agressora se tornou a vítima só porque era uma
frágil mulher. O lutador, por fim, que só praticava murros no ringue, apesar
das marcas das bolsadas por todo o corpo teve de arcar com um reparo no rosto
da dona da bolsa que o colocou em nocaute financeiramente e, além disso, padeceu
de completa desmoralização profissional, por conta das alusões da “girada da
bolsinha”. Vejam só. E não se enganem. Em qualquer caso deste tipo de
violência, não se pode falar nada. Aliás, não se deve emitir nenhum som ou
mesmo gemido por mais vigorosa que seja a surra que você, eventualmente, esteja
levando. Temos um companheiro que foi condenado por “violência verbal”: ele
gritou à esposa, mas assim o fez enquanto estava sendo covardemente espancado a
vassouradas, porque a déspota não aprovou a limpeza que ele executara com a
respectiva arma do crime. Ela o processou pelo grito, mas ninguém quis saber
que o som nasceu-lhe da dor insuportável, porque, acrescente-se, era uma
vassourona com cabo de ferro premeditadamente comprada com o claro intuito de
tortura. Incrível que ela obteve ganho de causa. Foi assim! Ora, alegou a
juíza: “homem não pode reclamar, nem sentir dor e muito menos gritar de dor”.
Insensibilidade feminista da lei que se tornou corriqueira. Outro caso, entre
milhares, foi de um estivador, na sua segunda jornada de trabalho, em casa, depois
de voltar do porto, que foi queimado pela demoníaca mulher com o ferro de
passar roupa, acusado por ela de não manejar adequadamente a ferramenta, e
quando a facinorosa percebeu que o ferro, tirado da energia elétrica, não
estava esquentando mais e queimando adequadamente, atirou-o na testa da vítima,
provocando uma enorme cratera que lavou a casa de sangue. O desfecho da
história é que ele foi severamente repreendido na delegacia da mulher por provocar
stress na esposa e dores musculares
nela pelo esforço que a atiradora teve para lançar o ferro de passar. É
inacreditável, mas foi assim! Mas ele, diga-se de passagem, só foi arrastado
para a delegacia por força policial depois de deixar a casa bem sequinha o que
foi muito difícil, porque, além das queimaduras por todo o corpo, o sangue não
parava de jorrar da testa aberta e sangue de macho, como sabemos, tem muita
substância e é difícil de limpar. Teve, ainda, o desditoso estivador, como
pena, de prestar serviço comunitário passando a roupa de toda a vizinhança
(amigas da megera indomada), no sentido de treinamento da atividade e para não
irritar mais a incontestável soberana. A delegada também o intimou a comprar um
ferro de passar roupa mais leve, mas isto a celerada dispensou-o exigindo mesmo
que o ferro fosse pesado. Sabemos bem da sua intenção. Vamos lançar, portanto, nosso grito de
revolta.
Houve silêncio geral. Eu
não acreditava no que estava acontecendo. Niversino me trouxe mais cerveja. O
jogo continuava, mas me acabou a disposição. Numa certa altura foram saindo
rapidamente, mal se despedindo. Um deles, ainda, massacrou-me os dedos cansados
da caneta e caminhou para o outro lado da rua onde uma mulher o esperava com as
mãos na cintura. O jogo acabou, mas a vida continuava.
Vão anos o sucedido. Quando
eu insinuava alguma coisa sobre o manifesto
alguém errava a jogada. Nunca mais aquele clima, nunca mais aquele jogo. Neste
último domingo, no entanto, o bar do Niversino estava fechado. Disseram-me que
uma freguesa quebrou-lhe um prato na cabeça e todos estavam tentando descobrir
o que ele havia feito. O gentil Niversino, o educado Niversino: o que ele teria
feito? Coloquei-me a rir sozinho e resolvi publicar o manifesto. Vamos jogar o
jogo.