domingo, 10 de abril de 2016

O CREPÚSCULO DO MACHO

            Tarde de domingo, anos passados, um tanto quanto cansado do papel e do vídeo do computador deslizei, como sempre faço, para a sinuca e a cerveja no Bar do Niversino. Nem precisava dizer que se trata de um ambiente muito diferente ao da Universidade. No bar, a verdade científica cai como uma inutilidade justamente pelo que valorizamos tanto na academia: a abstração. Ora, como João Antonio diria (não sei se ele disse): a sinuca é a vida. E a vida te solapa em toda a sua inteireza incompreensível, na medida em que se apresentam situações em que tudo que se há para dizer pode ser resumido àquela frase do celebre personagem de Suassuna: “não sei, só sei que foi assim!” O que narro, aqui, portanto é a mais lídima verdade, numa tentativa, bem sei que inócua, de se libertar da interpretação ideológica.
            Quando cheguei o jogo já havia começado. Atrasei-me. Ar pesado. Olharam-me com discrição, os quatro homens robustos em torno da mesa, e me cumprimentaram com respeito que eu interpreto principalmente pelo fato de ninguém me chamar de professor. Homens fortes e sérios, desse que falam de frente e quando falam olham nos olhos. Olhar incisivo que requer respeito e hombridade. O que não transparecia para quem não está acostumado com tal ambiente, mas para mim era óbvio, é que estavam todos muito bêbados como nunca vira antes. Mas vamos lá: “vamos jogar o jogo”.
“Vamos compor um manifesto”, disse-me um deles “e queremos que você o redija”. Fui tomado de grande surpresa. O jogo havia começado. Ora, eles estavam me pedindo justamente o que eu não tinha a menor disposição em fazer. Quando tentei esboçar um gesto de negação veio o Niversino com um tom mais sério do que de costume, dando-me a entender a gravidade da situação e me deixou um caderno amarfanhado e uma caneta. E me pus, na minha tarde de domingo e sinuca, a escrever o documento mais surreal da minha experiência de ficcionista, porque era verdade.
O texto que se segue, por fim, só têm de meu alguns adjetivos que inseri para não cair em repetições inadequadas e uma certa organização das ideias, tendo em vista que, por vezes, mais de um deles me falava ao mesmo tempo. O tom das falas era de veemência e austeridade, combinadas com um claro desequilíbrio por conta da embriaguez:

Vamos deixar de orgulho da virilidade inabalável e urgentemente aprovar a lei Chico da Penha (não pude conter o riso). É verdade. Não é para rir não. A situação é deveras preocupante e abala os alicerces da masculinidade, conferindo-nos a condição de capacho. A realidade não é o que parece, mas tudo uma armação feministoidemente construída e apoiada pela mídia, num processo de articulação em que se unem todas as minorias raciais e sexuais, com apoio da comunidade evangélica, das religiões afro-brasileiras e até do Papa. Está nisto, inclusive, um condicionamento coletivo que ameaça a língua semanticamente: ora, quando se diz “violência masculina” entende-se violência cometida pelo homem, mas quando se diz, em qualquer contexto, “violência feminina” não se entende, como deveria ser, violência cometida pela mulher, mas num manobra que ameaça qualquer coerência, entende-se violência contra a mulher. De qualquer forma, o homem paga o pato e todos os demais representantes da fauna e da flora. Em qualquer situação a mulher sempre é a vítima e o homem o culpado. Estamos indefesos contra um complô que desce às esferas do inconsciente coletivo. E nesse contexto a desculpa da tensão pré-mestrual é a mais leve. A condição masculina, na verdade, é de opressão e violência por parte do que sempre denominamos erradamente como “sexo frágil”, porque homem não bate em mulher, mas temos que nos defender de alguma forma sob pena de ameaça à extinção da espécie. Vamos ser realistas: nós nos tornamos o sexo frágil tendo em vista a revolução da palavra que cria verdade quando insistentemente repetida, como, aliás, Hitler praticou insistentemente. Vivemos numa sociedade tomada por infinitos e ferozes ditadores de saia. Até se defender de mulher é perigoso. Há muitos casos, como o de um lutador de Box, que ao erguer o braço por impulso de se proteger de uma vigorosa bolsada (ataque com uma bolsa de mulher) que voava ao seu nariz causou o retorno da referida arma ao rosto da atacante. O resultado foi um quase imperceptível sinal na pequena testa daquela que acabou se tornando a vítima! Verdade! A agressora se tornou a vítima só porque era uma frágil mulher. O lutador, por fim, que só praticava murros no ringue, apesar das marcas das bolsadas por todo o corpo teve de arcar com um reparo no rosto da dona da bolsa que o colocou em nocaute financeiramente e, além disso, padeceu de completa desmoralização profissional, por conta das alusões da “girada da bolsinha”. Vejam só. E não se enganem. Em qualquer caso deste tipo de violência, não se pode falar nada. Aliás, não se deve emitir nenhum som ou mesmo gemido por mais vigorosa que seja a surra que você, eventualmente, esteja levando. Temos um companheiro que foi condenado por “violência verbal”: ele gritou à esposa, mas assim o fez enquanto estava sendo covardemente espancado a vassouradas, porque a déspota não aprovou a limpeza que ele executara com a respectiva arma do crime. Ela o processou pelo grito, mas ninguém quis saber que o som nasceu-lhe da dor insuportável, porque, acrescente-se, era uma vassourona com cabo de ferro premeditadamente comprada com o claro intuito de tortura. Incrível que ela obteve ganho de causa. Foi assim! Ora, alegou a juíza: “homem não pode reclamar, nem sentir dor e muito menos gritar de dor”. Insensibilidade feminista da lei que se tornou corriqueira. Outro caso, entre milhares, foi de um estivador, na sua segunda jornada de trabalho, em casa, depois de voltar do porto, que foi queimado pela demoníaca mulher com o ferro de passar roupa, acusado por ela de não manejar adequadamente a ferramenta, e quando a facinorosa percebeu que o ferro, tirado da energia elétrica, não estava esquentando mais e queimando adequadamente, atirou-o na testa da vítima, provocando uma enorme cratera que lavou a casa de sangue. O desfecho da história é que ele foi severamente repreendido na delegacia da mulher por provocar stress na esposa e dores musculares nela pelo esforço que a atiradora teve para lançar o ferro de passar. É inacreditável, mas foi assim! Mas ele, diga-se de passagem, só foi arrastado para a delegacia por força policial depois de deixar a casa bem sequinha o que foi muito difícil, porque, além das queimaduras por todo o corpo, o sangue não parava de jorrar da testa aberta e sangue de macho, como sabemos, tem muita substância e é difícil de limpar. Teve, ainda, o desditoso estivador, como pena, de prestar serviço comunitário passando a roupa de toda a vizinhança (amigas da megera indomada), no sentido de treinamento da atividade e para não irritar mais a incontestável soberana. A delegada também o intimou a comprar um ferro de passar roupa mais leve, mas isto a celerada dispensou-o exigindo mesmo que o ferro fosse pesado. Sabemos bem da sua intenção.  Vamos lançar, portanto, nosso grito de revolta.

Houve silêncio geral. Eu não acreditava no que estava acontecendo. Niversino me trouxe mais cerveja. O jogo continuava, mas me acabou a disposição. Numa certa altura foram saindo rapidamente, mal se despedindo. Um deles, ainda, massacrou-me os dedos cansados da caneta e caminhou para o outro lado da rua onde uma mulher o esperava com as mãos na cintura. O jogo acabou, mas a vida continuava.
Vão anos o sucedido. Quando eu insinuava alguma coisa sobre o manifesto alguém errava a jogada. Nunca mais aquele clima, nunca mais aquele jogo. Neste último domingo, no entanto, o bar do Niversino estava fechado. Disseram-me que uma freguesa quebrou-lhe um prato na cabeça e todos estavam tentando descobrir o que ele havia feito. O gentil Niversino, o educado Niversino: o que ele teria feito? Coloquei-me a rir sozinho e resolvi publicar o manifesto. Vamos jogar o jogo.