domingo, 22 de maio de 2016

A DOR QUE FICA

Luzia nasceu rica. Mais jovem e única filha de poderoso agricultor e pecuarista com terras em Mato Grosso, Paraná e São Paulo. A vivacidade era-lhe a marca mais evidente. “Muita vida!” Repetiam todos que a conhecia. Fez duas graduações concomitantemente, na PUC de São Paulo, em que deu cabo aos 21 anos incompletos. Viajou muito, enquanto pode, porque a primeira crise acometeu-a aos 22 anos, uma convulsão violenta. Passará, pouco antes, em concurso público e se revestia de entusiasmo contagiante pela docência de história e por diferentes culturas.
Tenho clara lembrança, ainda, daquela noite de domingo em que ficamos olhando as fotografias de suas viagens à França e ao Egito. Ela ria auto de observações das culturas que então conhecerá e depois se revestia de discreto rubor, e baixava os olhos de uma maneira muito particular, só dela. Foi esta, sem que eu saiba porquê, a imagem que me ficou, soberanamente. Ouvi dela que em qualquer cultura as pessoas adoecem por falta de amor.
Saíamos, ainda, nestes dias, com a parcimônia permissível, e nosso recanto predileto era o Cine Ouro Branco. Chorou quando assistiu “Noites de Cabíria” e se lamentou não ter conhecido a Itália. Choramos juntos, bem me lembro, mas por razões diferentes. Ainda teve, naquela noite, aulas de Fellini, no Cinelândia (não é no Rio, mas um bar em Presidente Prudente), em que todos a cercaram para ouvir os enredos dos demais filmes dele. Ela tinha sempre uma interpretação muito particular das coisas e ouvi-la falar, por exemplo, dos filmes do Glauber Rocha era melhor do que assisti-los.
A doença se agravou e se tornaram complicadas as saídas. Por muito tempo fui tido como persona non grata por seus pais e irmãos por conta mesmo das noitadas no teatro, cinema e no Cinelândia, onde a levava habitualmente, mas com o tempo só lhe restou a minha amizade, das muitas dos bons tempos, e sentia que todos agradeciam minhas visitas.
Passou dois anos nos Estados Unidos em busca de cura. Foi doloroso vê-la partir. Ainda conversamos muito no aeroporto e ela não perdia o humor, mesmo quando emperrou a engrenagem da sua cadeira de rodas e eu não soube arrumar. “Vou perder o avião e morrer aleijada e seca por tua culpa”, mas ria enquanto ironizava a situação. Os pais a repreendiam, mas eu compreendia seu exótico humor. Deixei-a na sala de embarque, em pé, esperançosa de que voltaria curada. Choramos na despedida, mas novamente por razões diferentes.
Só visitei-a um mês depois do seu retorno. Ela estava com 25 ou 26 anos e a situação se agravará significativamente. Perdera completamente o controle das pernas a ponto de ter que ser assistida continuamente, e a doença avançava, inutilizando-a. Mas ainda me recebeu com alegria e quis saber de tudo, do meu casamento, dos meus planos etc. Tinha uma coleção de marcadores de livros que guardará para mim, ao todo nove, com registro escrito das circunstancias em que os conseguira, muitas vezes em letras trêmulas. Prometi que a visitaria toda semana.
Não cumpri a promessa.
Quando a mãe dela morreu fiquei sabendo que o pai morrera pouco antes e fui visita-la. Ela então morava na casa do irmão que, por sua vez, administrava os bens herdados dos pais e pouco permanecia na cidade. Enfermeiras rodiziavam os cuidados e uma delas ainda se prestava a ler para ela, porque sentiu que isto lhe dava alguma alegria. Luzia perderá todos os movimentos e já não falava. Olhei-a nos olhos em que havia ainda vida e tentei até sorrir, mas uma lágrima deslizou lenta pelo seu rosto, muito pálido e magro. Talvez tenhamos desta vez chorado pelo mesmo motivo. Não sei.
Encontrei a cunhada dela, no shopping, na véspera deste Natal, depois de tantos nos. Ela caminhava com os netos e, como sempre, pairou certo constrangimento quando me viu, mas veio me saudar, alegre ainda. Eu quis perguntar de Luzia, mas não soube como fazê-lo, porque as palavras vinham combinadas e comprometidas com um sentimento meio que inexplicável de desculpa. Ela entendeu e sorriu, e acenou, gentil ainda, puxada pelas crianças.
Sentei-me ali, num daqueles bancos que há em corredores de shopping center, lembrando que deveria ligar para os meus filhos, meu neto. Não liguei. Pensei que deveria ir visitar Luzia naquela noite de 24 de dezembro, mas não fui. Fiquei depois sabendo que ela morrera justamente naquele Natal. Morrer, afinal é um nascimento, pensei comigo. Não chorei por falta de companhia.

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