Luzia nasceu rica. Mais jovem e única
filha de poderoso agricultor e pecuarista com terras em Mato Grosso, Paraná e
São Paulo. A vivacidade era-lhe a marca mais evidente. “Muita vida!” Repetiam
todos que a conhecia. Fez duas graduações concomitantemente, na PUC de São
Paulo, em que deu cabo aos 21 anos incompletos. Viajou muito, enquanto pode,
porque a primeira crise acometeu-a aos 22 anos, uma convulsão violenta. Passará,
pouco antes, em concurso público e se revestia de entusiasmo contagiante pela
docência de história e por diferentes culturas.
Tenho clara lembrança, ainda, daquela
noite de domingo em que ficamos olhando as fotografias de suas viagens à França
e ao Egito. Ela ria auto de observações das culturas que então conhecerá e
depois se revestia de discreto rubor, e baixava os olhos de uma maneira muito
particular, só dela. Foi esta, sem que eu saiba porquê, a imagem que me ficou,
soberanamente. Ouvi dela que em qualquer cultura as pessoas adoecem por falta
de amor.
Saíamos, ainda, nestes dias, com a
parcimônia permissível, e nosso recanto predileto era o Cine Ouro Branco. Chorou
quando assistiu “Noites de Cabíria” e se lamentou não ter conhecido a Itália.
Choramos juntos, bem me lembro, mas por razões diferentes. Ainda teve, naquela
noite, aulas de Fellini, no Cinelândia (não é no Rio, mas um bar em Presidente
Prudente), em que todos a cercaram para ouvir os enredos dos demais filmes
dele. Ela tinha sempre uma interpretação muito particular das coisas e ouvi-la
falar, por exemplo, dos filmes do Glauber Rocha era melhor do que assisti-los.
A doença se agravou e se tornaram
complicadas as saídas. Por muito tempo fui tido como persona non grata por seus pais e irmãos por conta mesmo das
noitadas no teatro, cinema e no Cinelândia, onde a levava habitualmente, mas
com o tempo só lhe restou a minha amizade, das muitas dos bons tempos, e sentia
que todos agradeciam minhas visitas.
Passou dois anos nos Estados Unidos em
busca de cura. Foi doloroso vê-la partir. Ainda conversamos muito no aeroporto
e ela não perdia o humor, mesmo quando emperrou a engrenagem da sua cadeira de
rodas e eu não soube arrumar. “Vou perder o avião e morrer aleijada e seca por
tua culpa”, mas ria enquanto ironizava a situação. Os pais a repreendiam, mas
eu compreendia seu exótico humor. Deixei-a na sala de embarque, em pé,
esperançosa de que voltaria curada. Choramos na despedida, mas novamente por
razões diferentes.
Só visitei-a um mês depois do seu
retorno. Ela estava com 25 ou 26 anos e a situação se agravará
significativamente. Perdera completamente o controle das pernas a ponto de ter
que ser assistida continuamente, e a doença avançava, inutilizando-a. Mas ainda
me recebeu com alegria e quis saber de tudo, do meu casamento, dos meus planos
etc. Tinha uma coleção de marcadores de livros que guardará para mim, ao todo
nove, com registro escrito das circunstancias em que os conseguira, muitas
vezes em letras trêmulas. Prometi que a visitaria toda semana.
Não cumpri a promessa.
Quando a mãe dela morreu fiquei sabendo
que o pai morrera pouco antes e fui visita-la. Ela então morava na casa do
irmão que, por sua vez, administrava os bens herdados dos pais e pouco
permanecia na cidade. Enfermeiras rodiziavam os cuidados e uma delas ainda se
prestava a ler para ela, porque sentiu que isto lhe dava alguma alegria. Luzia
perderá todos os movimentos e já não falava. Olhei-a nos olhos em que havia
ainda vida e tentei até sorrir, mas uma lágrima deslizou lenta pelo seu rosto,
muito pálido e magro. Talvez tenhamos desta vez chorado pelo mesmo motivo. Não
sei.
Encontrei a cunhada dela, no shopping, na véspera deste Natal, depois
de tantos nos. Ela caminhava com os netos e, como sempre, pairou certo
constrangimento quando me viu, mas veio me saudar, alegre ainda. Eu quis
perguntar de Luzia, mas não soube como fazê-lo, porque as palavras vinham
combinadas e comprometidas com um sentimento meio que inexplicável de desculpa.
Ela entendeu e sorriu, e acenou, gentil ainda, puxada pelas crianças.
Sentei-me ali, num daqueles bancos que
há em corredores de shopping center,
lembrando que deveria ligar para os meus filhos, meu neto. Não liguei. Pensei
que deveria ir visitar Luzia naquela noite de 24 de dezembro, mas não fui.
Fiquei depois sabendo que ela morrera justamente naquele Natal.
Morrer, afinal é um nascimento, pensei comigo. Não chorei por falta de
companhia.
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