domingo, 8 de outubro de 2017

JOSEZINHO

Assumira o hábito dos passeios noturnos para jantar. Apesar de vegetariano desde tenra idade, caminhava, poucas quadras, ao cair da tarde, carregando uma pequena embalagem de plástico, até um restaurante cuja especialidade era carne. Carne assada. No caso, em uma churrasqueira, destas manuais, que ficava na calçada do estabelecimento e convidava, pelo cheiro, os clientes do bairro periférico a apreciarem a iguaria. Bem ou pouco passado, simples ou completo. A modalidade simples consistia, além de seis a oito pequenos pedaços de carne num espeto, em dois ou três pedaços de mandioca cozida. Quem optasse pelo completo teria também, além da mandioca, uma porção de arroz, a farofa (farinha temperada) e o que chamavam vinagrete (tomate picado e cebola, temperados no vinagre). Bem, todos conhecemos este tipo de estabelecimento. Demoro-me aqui contando os detalhes, porque meu texto pode sobreviver ao tempo, dando sentido a tal explicação.
            Era um homem formal de práticas habituais. Magro, alto, sóbrio e elegante, na modéstia das suas roupas baratas. O garçom já sabia das preferências do discreto freguês até ao ponto de dispensar o pedido: “o de sempre”. Chamava-o de doutor. José era o seu nome. O garçom não sabia. Talvez poucos soubessem. Muito cedo proibiu com natural autoridade que o chamassem de Zezinho. Era José, argumentava. O estranhamento foi geral. O próprio pai reagiu com dificuldade, mas acatou a ordem do filho adolescente. Fora o Padre que escorregará no tratamento e o chamara de Josezinho. Ele, por fim, quase sorriu. Ficou. Era o José. E quando alguém perguntava “que José” levantava-se o coro: “o Josezinho”.
            “O de sempre” de Josezinho era o “completo”: carne, arroz, mandioca e a salada de tomate com cebola. Dispensava a farofa. Guardava a carne numa pequena embalagem que trazia consigo e comia os demais ingredientes com a morosidade de um lorde, mastigando ritmadamente. Ao terminar a refeição, o garçom trazia-lhe água em um copo grande que ele não bebia nem a metade. Era sempre assim. Depois saia, se acomodava num banco da praça em frente ao estabelecimento e abria a pequena embalagem.
            Josezinho casará ainda aos 18 anos. Ela tinha 14 e um sorriso de enternecer as pedras. Quando a sogra não reconheceu o rosto da filha sentiu que o casamento acabara e tratou de conformar a consciência moral dos envolvidos. Josezinho não fez alarde e arrumou outra casa para morar. Ela dispensou ajuda e voltou para a companhia dos pais. Ele, por fim, ficou na casinha que perdeu o cheiro de lavanda para o de papel velho.
            Josezinho não demonstrou interesse por outra mulher nos anos que se seguiram e a jovem esposa do casamento desfeito, por vezes, chorava de saudade causando perplexidade geral. Quando o pai o visitava evitava falar no assunto, bem como o dono do escritório de contabilidade onde trabalhara desde sempre.
            Desprendia cheiro de carne assada da pequena embalagem e não se passava muito tempo até que um cachorro, enxotado pelo restaurante viesse rodear o contador e comer os pequenos pedaços de carne.
            Josezinho cuidava de guardar a embalagem para jogá-la, adequadamente, no lixo e insinuava fazer um carinho no eventual cachorro faminto. Por vezes conseguia e, ainda, companhia para o retorno a sua casa, mas o convidado nunca ficava.
            Achava obscena a ideia de comprar um cão e fazê-lo prisioneiro em seu quintal. Ganhara, certa ocasião, um filhote de raça indefinida. Lépido e fagueiro. Perdeu-o como à esposa, sem que jamais o visse depois. Aquela ainda via, na Igreja e, às vezes, acidentalmente na rua. Quem o observasse atentamente perceberia nele traços de desconforto quando ela se fez acompanhada. Passou a evitar olhá-la, bem como fugia a um eventual cumprimento. O outro até que era parecido com ele, mas sorria aos quatro ventos.
            As noite de Josezinho, depois do jantar, reduziam-se à leituras do Livro Sagrado e clássicos da literatura universal. Não aprovava os programas de televisão, salvo a Missa do Galo. Um dia se pegou rindo quando assistia um desses programas de auditório. Foi-lhe, sem que eu saiba dizer a razão, o indicativo moral de que não deveria se deixar levar por tal leviandade.
Josezinho não sorria. Permitia-se, no entanto, a se demorar no olhar o que lhe dava uma combinação simpática ao rosto comprido. Não se comprometia nos comentários quando se via obrigado a expressar sua opinião. Nas reuniões familiares e nos encontros inevitáveis com amigos e conhecidos que não deixavam de estima-lo procedia com natural simplicidade e discreta autoridade.
Quando ela se casou com o sorridente rapaz, que mencionei faz pouco, ele não deixou escapar nenhuma inquietação se é que sentiu alguma, mas voltou cedo para casa, acomodou-se em sua poltrona de leitura e ficou ali por horas: o olhar parado na estante de livros sem que se decidisse por nenhum.
Foi num outubro que Josezinho morreu. Tinha pouco mais de quarenta anos. Jantará como sempre, como sempre recolherá os pedaços de carne na embalagem de isopor e sentará na praça, no mesmo banco. Foi ali que se sentiu mal e foi conduzido ao Pronto-Socorro, aonde chegou ainda com vida. “Um ataque fulminante” resumiu o médico de plantão. A embalagem com carne ficou sobre o banco.
Durante o enterro, o garçom de sempre conversou com o pai sobre um atropelamento ocorrido pouco antes do enfarte do filho. Fora um cachorro, frequentador indesejado do restaurante que atravessava a rua na direção de Josezinho. O contador teria levado a mão ao peito no preciso momento. O pai não entendeu, apesar de saber do estranho amor de Josezinho pelos cães que afinal nunca tivera nenhum de seu. O garçom contou ainda que correu ao encontro dele e presenciou um sorriso do contador, como nunca virá, no momento contundente.
Dizem que as coisas fazem sentido no momento da morte. Não sei.
Ela recebeu da mãe de Josezinho uma caixa de madeira, com frascos de lavanda, que fora encontrada bem escondida no velho guarda-roupa do casal. Junto havia uma carta acomodada em sóbrio envelope branco. Ela abriu a carta. Estava trêmula. Antes de ler, ainda, guardou com cuidado a caixa na estante de madeira, com poucos livros, que tinha na sala. Leu. Não pode segurar uma lágrima teimosa, mas, ao mesmo tempo, sorriu como fazia nos bons tempos do início do casamento. 

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