sábado, 2 de dezembro de 2017

MINIMALISMO

Ela se levantou resoluta, olhando-me firmemente. Aproximou a cadeira à mesa num gesto até delicado em relação à expressão de desconforto e foi embora sem olhar para trás. Ainda, por vezes, a cena me castiga em hora inusitada. Agora mesmo, sob sombra de uma árvore, que eu procuro distinguir o nome, lembrei-me dela. Preciso voltar a casa. Sei que deveremos ir embora depois do almoço. Há sementes por toda parte e frutos espalhado no chão. Brotarão ali? O fato é que sei onde encontrá-la, vê-la passar pelo menos. Curioso como meus hábitos mudaram depois do desarranjo amoroso como se, na verdade, eu fugisse de qualquer contato. Não tenho mais me prestado aos paraísos do consumo. Nem me lembro de qual foi a última peça de roupa que comprei.  Distingo o canto de um pássaro dentre tantos, um canto muito triste. Qual será? Olho para o meu sapato velho. Confortável, muito confortável. É tudo de que preciso. Alguém olhará com reservas ao meu sapato velho, ou minha camisa? Não vou pensar nisto. Amanhã terei uma reunião importante. Está tudo bem. Não vou me preocupar com roupa e sapato. Experimento a fruta caída no chão. Araticum é o nome da fruta. Lembrei-me, finalmente. O pássaro... Não tem gosto de nada a fruta, mas não consigo parar de raspar os dentes nas sementes pretas. Pego outra, do chão. Eu poderia me alimentar aqui, na natureza, de frutas. Tudo tão diferente. Sinto-me bem. Tão diferente dos restaurantes em que frequentava com ela. Maldita e contraditória saudade. Tenho de voltar à casa, porque já devem me procurar para o almoço e deveremos voltar à cidade. Sei que querem que eu coma carne de cordeiro que sacrificaram ainda hoje, mas não farei isto. Sei que ela apreciaria demais a iguaria que agora me parece coisa repulsiva. Tomo a terceira fruta. Vontade de penetrar na mata, mas tenho que voltar. Será possível que possa perder o emprego por conta de um sapato velho? Ela não entraria na mata comigo. Acho que não. Perdia horas em lojas, procurando alguma coisa que não sabia exatamente o que era. Ela foi mesmo sem olhar para trás na última vez que nos vimos. Talvez esperasse que eu a procurasse, mas o fato é que as coisas todas foram perdendo o sentido. Naquela noite tive impulsos de voltar caminhando para a casa, mas não poderia deixar o carro. Há tempos coisas antes caras vinham perdendo toda significação. Não foi de uma vez. Não sou dado à epifanias. O pássaro, eu não consigo lembrar o nome. Não faz mal. As coisas não precisam ter nome para serem significativas. Será que mataram o cordeiro para me agredir? Tenho impulsos de rir de mim mesmo. A terra é macia embaixo dos meus sapatos confortáveis. As folhas foram  caindo e ficando, e se transformaram em terra. A morte tem gosto. A putrefação é linda. Tomo a terra nas mãos e sinto na boca o sangue do cordeiro morto e o gosto da fruta que não tinha gosto. Estranha vontade de levar a terra à boca. Ela agora deve estar almoçando no shopping com algum namorado novo, afeito às lojas de departamento. Espero. Vou entrar na mata. Que esperem mais um pouco, se é que me esperam. Era o canto do urutau que distingui entre tantos. Estranho que é uma ave noturna e passa pouco do meio-dia. Não vou comprar roupas e vou ficar com este sapato ainda por um bom tempo. Não quero comer cordeiro e nem restaurante com ar condicionado. Vamos perdendo as coisas pelo caminho, e as pessoas. Sei que não a terei de volta e a dor é branda e lancinante ao mesmo tempo. Outras pessoas se foram sem que eu quisesse e doeu menos. A dor da sua ausência definitiva é como ficar na chuva vendo o trem dobrando a curva do horizonte com a insatisfação do compromisso perdido e a clareza que foi melhor assim. Vou penetrar na mata mais um pouco. O urutau voltou a cantar.