Ela se
levantou resoluta, olhando-me firmemente. Aproximou a cadeira à mesa num gesto
até delicado em relação à expressão de desconforto e foi embora sem olhar para
trás. Ainda, por vezes, a cena me castiga em hora inusitada. Agora mesmo, sob
sombra de uma árvore, que eu procuro distinguir o nome, lembrei-me dela. Preciso
voltar a casa. Sei que deveremos ir embora depois do almoço. Há sementes por
toda parte e frutos espalhado no chão. Brotarão ali? O fato é que sei onde
encontrá-la, vê-la passar pelo menos. Curioso como meus hábitos mudaram depois
do desarranjo amoroso como se, na verdade, eu fugisse de qualquer contato. Não
tenho mais me prestado aos paraísos do consumo. Nem me lembro de qual foi a
última peça de roupa que comprei. Distingo
o canto de um pássaro dentre tantos, um canto muito triste. Qual será? Olho para
o meu sapato velho. Confortável, muito confortável. É tudo de que
preciso. Alguém olhará com reservas ao meu sapato velho, ou minha camisa? Não
vou pensar nisto. Amanhã terei uma reunião importante. Está tudo bem. Não vou
me preocupar com roupa e sapato. Experimento a fruta caída no chão. Araticum é
o nome da fruta. Lembrei-me, finalmente. O pássaro... Não tem gosto de nada a
fruta, mas não consigo parar de raspar os dentes nas sementes pretas. Pego
outra, do chão. Eu poderia me alimentar aqui, na natureza, de frutas. Tudo tão
diferente. Sinto-me bem. Tão diferente dos restaurantes em que frequentava com
ela. Maldita e contraditória saudade. Tenho de voltar à casa, porque já devem
me procurar para o almoço e deveremos voltar à cidade. Sei que querem que eu
coma carne de cordeiro que sacrificaram ainda hoje, mas não farei isto. Sei que
ela apreciaria demais a iguaria que agora me parece coisa repulsiva. Tomo a
terceira fruta. Vontade de penetrar na mata, mas tenho que voltar. Será
possível que possa perder o emprego por conta de um sapato velho? Ela não
entraria na mata comigo. Acho que não. Perdia horas em lojas, procurando alguma
coisa que não sabia exatamente o que era. Ela foi mesmo sem olhar para trás na
última vez que nos vimos. Talvez esperasse que eu a procurasse, mas o fato é
que as coisas todas foram perdendo o sentido. Naquela noite tive impulsos de
voltar caminhando para a casa, mas não poderia deixar o carro. Há tempos coisas
antes caras vinham perdendo toda significação. Não foi de uma vez. Não sou dado
à epifanias. O pássaro, eu não consigo lembrar o nome. Não faz mal. As coisas
não precisam ter nome para serem significativas. Será que mataram o cordeiro
para me agredir? Tenho impulsos de rir de mim mesmo. A terra é macia embaixo
dos meus sapatos confortáveis. As folhas foram caindo e ficando, e se transformaram em terra.
A morte tem gosto. A putrefação é linda. Tomo a terra nas mãos e sinto na boca o
sangue do cordeiro morto e o gosto da fruta que não tinha gosto. Estranha
vontade de levar a terra à boca. Ela agora deve estar almoçando no shopping com algum namorado novo, afeito
às lojas de departamento. Espero. Vou entrar na mata. Que esperem mais um
pouco, se é que me esperam. Era o canto do urutau que distingui entre tantos.
Estranho que é uma ave noturna e passa pouco do meio-dia. Não vou comprar
roupas e vou ficar com este sapato ainda por um bom tempo. Não quero comer cordeiro
e nem restaurante com ar condicionado. Vamos perdendo as coisas pelo caminho, e
as pessoas. Sei que não a terei de volta e a dor é branda e lancinante ao mesmo
tempo. Outras pessoas se foram sem que eu quisesse e doeu menos. A dor da sua
ausência definitiva é como ficar na chuva vendo o trem dobrando a curva do
horizonte com a insatisfação do compromisso perdido e a clareza que foi melhor
assim. Vou penetrar na mata mais um pouco. O urutau voltou a cantar.