segunda-feira, 30 de setembro de 2019

“ESSE MUNDO NÃO É UM LUGAR BOM PARA VIVER”


Ocasionalmente, levava minhas crianças para brincarem em um balneário que ficava relativamente próximo à minha casa. Normalmente, isto ocorria nas quintas-feiras e o passeio durava toda a manhã, começando bem cedo. Era muito divertido. Por vezes, íamos todos a pé ou eu me dispunha a correr atrás das bicicletas deles. Coisa que não saberia repetir agora, dado ao avanço da idade. Bem, meus filhos cresceram, alcançaram independência e ficou uma saudade irreprimível daqueles dias.
Havia, ainda, um outro elemento naqueles passeios de quem, aliás, me propus a escrever, tendo em vista que sua lembrança tornou-se impositiva neste últimas anos de minha velhice.
Numa daquelas manhãs, a caminho do Balneário, vi uma criança, pouco maior que meus filhos, perto de dez anos, despedir-se de alguém e se juntar a nós. Ele foi caminhando a nosso lado sem dizer nada. Havia uma limpidez na sua expressão e gratidão nos seus olhos. Foi rapidamente assimilado ao grupo e fomos nos conhecendo aos poucos, na medida em que as circunstâncias se insinuavam. Natanael era negro retinto e fora adotado por pais brancos de classe média que não poderiam ter filhos. Muito tempo depois eu conheceria sua mãe adotiva que me contou do temor de que acontecesse alguma coisa com o menino por conta de seus passeios solitário e acabou concordando que ele fosse ao rio com o professor. Afinal, eu não era professor. Só vim a sê-lo mais de dez anos depois da profecia de Natanael. Aquela época só esperava que melhorasse minha vida de bancário, bem como a efetivação da democracia no país que, por ironia do destino, estamos perdendo agora, novamente.
De uma feita, vi o menino com um peixe morto na mão, que encontrará na praia. Uma lágrima gorda brilhava no seu rosto. Eu o vi procurar um lugar discreto para enterrar o falecido. Em outra circunstância, quando uma galinha atravessava a rua, ele me disse que tinha muita pena das galinhas que moravam em granjas, porque elas viviam só para engordar e aguardar a morte. Contou-me, ainda, que elas eram separadas dos seus filhos, que seriam sacrificados se tivessem qualquer imperfeição. Naquele momento, me lembro como se fosse agora, Natanael se aproximou mais do que pode da galinha e estender-lhe a mão. Todos riram. A galinha foi se aproximando dele a passo medido, mas uma motocicleta barulhenta quebrou a magia do contato e a galinha correu para os eucaliptos que havia na margem da estrada.
Nunca presenciei um riso de Natanael.
De outra feita, me contou dos porcos. Viviam amontoados; eram castrados, logo nos primeiros dias de vida e seus dentes e rabo eram cortados. Uma vida de tortura para morrerem doentes e servirem de alimentação para que as pessoas ficassem doentes, também. A mãe adotiva me disse que ele jamais experimentou carne de qualquer animal e nem derivados, e tinha saúde perfeita.
Lembro-me que naquela época eu não me perguntava como uma criança sabia tanto e possui tão rara sensibilidade. Aliás, eu já havia me feito vegetariano pela causa animal, mas, principalmente, por problemas de saúde. Uma criança, como se encontrasse em mim terreno propício para a aprendizagem, afinava minha sensibilidade para o problema. Hoje este fato me emociona. No fundo, penso agora, ele vivia em conflito interior intenso: queria perdoar as pessoas por não terem sensibilidade aos sofrimentos dos animais ao mesmo tempo em que não conseguia compreender tal insensibilidade.
Quando me sugeriram leva-lo para fazer uma palestra por ocasião dos meus relatos, discretamente mudaram de ideia quando souberam da pouca idade e da negritude. Bem, estávamos nos anos 80 do século passado. Acredito que isto não aconteceria nos nossos dias.
Natanael morreu aos 19 anos incompletos, quando dava inicio ao curso universitário em São Paulo. Uma bala perdida de um único disparo acidental colheu-o na Avenida Paulista. Disseram que, estranhamente, tinha um sorriso no rosto que não se desfez com a morte. Aliás, uma das últimas frases que ouvi dele foi que “esse mundo não é um lugar bom para viver”.