Ocasionalmente,
levava minhas crianças para brincarem em um balneário que ficava relativamente
próximo à minha casa. Normalmente, isto ocorria nas quintas-feiras e o passeio
durava toda a manhã, começando bem cedo. Era muito divertido. Por vezes, íamos
todos a pé ou eu me dispunha a correr atrás das bicicletas deles. Coisa que não
saberia repetir agora, dado ao avanço da idade. Bem, meus filhos cresceram,
alcançaram independência e ficou uma saudade irreprimível daqueles dias.
Havia, ainda,
um outro elemento naqueles passeios de quem, aliás, me propus a escrever, tendo
em vista que sua lembrança tornou-se impositiva neste últimas anos de minha
velhice.
Numa daquelas
manhãs, a caminho do Balneário, vi uma criança, pouco maior que meus filhos, perto
de dez anos, despedir-se de alguém e se juntar a nós. Ele foi caminhando a
nosso lado sem dizer nada. Havia uma limpidez na sua expressão e gratidão nos
seus olhos. Foi rapidamente assimilado ao grupo e fomos nos conhecendo aos
poucos, na medida em que as circunstâncias se insinuavam. Natanael era negro
retinto e fora adotado por pais brancos de classe média que não poderiam ter
filhos. Muito tempo depois eu conheceria sua mãe adotiva que me contou do temor
de que acontecesse alguma coisa com o menino por conta de seus passeios
solitário e acabou concordando que ele fosse ao rio com o professor. Afinal, eu
não era professor. Só vim a sê-lo mais de dez anos depois da profecia de
Natanael. Aquela época só esperava que melhorasse minha vida de bancário, bem
como a efetivação da democracia no país que, por ironia do destino, estamos
perdendo agora, novamente.
De uma feita,
vi o menino com um peixe morto na mão, que encontrará na praia. Uma lágrima
gorda brilhava no seu rosto. Eu o vi procurar um lugar discreto para enterrar o
falecido. Em outra circunstância, quando uma galinha atravessava a rua, ele me
disse que tinha muita pena das galinhas que moravam em granjas, porque elas
viviam só para engordar e aguardar a morte. Contou-me, ainda, que elas eram
separadas dos seus filhos, que seriam sacrificados se tivessem qualquer
imperfeição. Naquele momento, me lembro como se fosse agora, Natanael se
aproximou mais do que pode da galinha e estender-lhe a mão. Todos riram. A galinha
foi se aproximando dele a passo medido, mas uma motocicleta barulhenta quebrou
a magia do contato e a galinha correu para os eucaliptos que havia na margem da
estrada.
Nunca
presenciei um riso de Natanael.
De outra
feita, me contou dos porcos. Viviam amontoados; eram castrados, logo nos
primeiros dias de vida e seus dentes e rabo eram cortados. Uma vida de tortura
para morrerem doentes e servirem de alimentação para que as pessoas ficassem
doentes, também. A mãe adotiva me disse que ele jamais experimentou carne de
qualquer animal e nem derivados, e tinha saúde perfeita.
Lembro-me que
naquela época eu não me perguntava como uma criança sabia tanto e possui tão
rara sensibilidade. Aliás, eu já havia me feito vegetariano pela causa animal,
mas, principalmente, por problemas de saúde. Uma criança, como se encontrasse
em mim terreno propício para a aprendizagem, afinava minha sensibilidade para o
problema. Hoje este fato me emociona. No fundo, penso agora, ele vivia em
conflito interior intenso: queria perdoar as pessoas por não terem
sensibilidade aos sofrimentos dos animais ao mesmo tempo em que não conseguia
compreender tal insensibilidade.
Quando me
sugeriram leva-lo para fazer uma palestra por ocasião dos meus relatos,
discretamente mudaram de ideia quando souberam da pouca idade e da negritude.
Bem, estávamos nos anos 80 do século passado. Acredito que isto não aconteceria
nos nossos dias.
Natanael
morreu aos 19 anos incompletos, quando dava inicio ao curso universitário em
São Paulo. Uma bala perdida de um único disparo acidental colheu-o na Avenida
Paulista. Disseram que, estranhamente, tinha um sorriso no rosto que não se
desfez com a morte. Aliás, uma das últimas frases que ouvi dele foi que “esse
mundo não é um lugar bom para viver”.