sexta-feira, 8 de novembro de 2019

VEGANIDADE


        Resolvi respirar da turba e sai para a calçada. Não sei o que fazer, na minha idade, em evento de jovens. Ainda me convidam por conta de anos no magistério superior. Ela estava ali com um sorriso aberto que me magnetizou. Comprimentos, comentários sobre o tempo, a lua, a rua...
         – “Ninguém se torna vegano impunemente”, desferiu a mocinha a certa altura da nossa conversa, por conta de uma pergunta nesse sentido. Que bonitinha, pensei comigo.
– “Parei de fumar, também”, acrescentou ela. Perguntei-lhe se fumar comprometia a condição vegana.
– “Não, necessariamente. Eu acho que acaba sendo uma consequência”.
Não entendi, mas não disse nada.
Ela sorriu. Era a coisa mais linda de se ver. Há poucos metros de nós estava a sua “galera”, como dizem, conversando alegremente, mas ela ficou ali, sorrindo para mim.
– “Um dia, ao cortar um bife senti um tremor nas mãos e a carne me desceu amarga”. Enquanto falava ela olhava as duas mãos que levou a altura do rosto. Trazia uma bolsa de pano branco à tiracolo. Coisa muito simples.
– “Minha mãe percebeu e não me obrigou mais a comer carne. Depois foram os outros produtos de origem animal que eu me livrei: o ovo, o leite, o queijo, o mel...”
– “Mas você está muito magra”, rebati, mas ela pareceu ignorar o meu comentário. De fato não estava magra. Era perfeita. Parecia totalmente envolvida com a conversa. Só tinha olhos para mim. Pensei comigo: “vai dar certo”.
– “Foi nesta época, eu tinha doze anos, que me deu vontade de sofrer”. Risos. “Toda oportunidade que me aparecia ia ver os animais em sítios e fazendas, porcos, vacas... e tentava contato com eles. Impulso irresistível de abraça-los. Tentava não chamar a atenção das pessoas, porque chorava muito por vê-los ali escravizados, sendo torturados e aguardando a inevitável morte”.
– “Nossa, que exagero”.
– “Pois é”, continuou ela, “percebi minha solidão e me acostumei a ela, afinal eu tinha uma causa maior”.
Quando ela disse a última frase tive um impulso indistinto de lembrança. Talvez já a conhecesse.
– “Aos poucos, fui encontrando quem partilhasse os mesmos ideais e a utopia se revelou esperança”.
Novamente, a impressão que já a conhecia. No entanto, fiquei estudando uma maneira de concretizar a aproximação. Era tudo o que me interessava. E sem que eu esperasse, ela me abraçou. Percebi que não precisaria adiantar nada, nem carregar a culpa de seduzir alguém pouco mais que uma adolescente. Parecia tão segura, tão consciente. Ela se afastou um pouco, segurou a minha mão, tinha uma fugidia lágrima no rosto.
– “Apareça lá em casa. Faz exatos dez anos que você nunca mais nos visitou”.
Exatamente, neste momento, que recuperava a lembrança, estacionou ao nosso lado um carro branco e saiu dele um velho amigo que, de fato, há muito tempo eu não visitava. A jovem vegana era sua filha. Eu praticamente a vi nascer e acompanhei o crescimento, pelo menos, nos dez primeiros anos de vida. Ele desceu do carro e reforçou o convite para visita-lo. Fiquei ali um tempinho, vendo o carro dobrar a esquina. Ora, pensei comigo, retornando para casa: “Deu certo, um abraço antes de morrer”. Conforto inexplicável.