domingo, 20 de novembro de 2016

ORAÇÃO

Repetes, sem pensar, aquele nome?

Exploras a sonoridade da palavra,
Isolando as sílabas, desarticulando-as,
Identificando incidências de vogais e consoantes,
A expressividade das combinações sonoras?

Sei bem como é isso.

Na verdade, uma música acompanha o fenômeno, não é?
Sem necessidade de qualquer fonema.
Música pura,
Transcendental,
Vadia,
Anterior a qualquer forma de pensamento.

E a música daquele nome te leva e te eleva,
Porque precisas de descanso, não é?
E se toda significação te escapa,
Porque é poeira.
Fica-te uma incompreensível promessa de sentido
Naquele nome.

Um dos sintomas do amor
Está em repetir o nome da pessoa amada
Como uma oração.

sábado, 29 de outubro de 2016

PREDESTINAÇÃO

Se eu tivesse 20 anos
Te amaria...

Mesmo que fosse Rodion Românovitch Raskólnikov
Entre o altruísmo e a apatia
Entre o crime e a confissão
Te amaria...

Se fosse Salamano,
Com ou sem seu cão,
Enxotando-a
Te amaria...

Se fosse Rimbaud
Ou Verlaine
Na confusão do lirismo e dos erros
Te amaria...

Se fosse o príncipe
ou o sapo...
entre o beijo e a náusea
te amaria...

Santa ou Vénus,
Em Jerusalém ou Sodoma
Chorando sangue ou comendo terra
te amaria...

Mas sou eu,
Desgraçadamente eu
E de remorso e fatalidade
Te amo,
Porque de qualquer forma
Te amaria!

sexta-feira, 7 de outubro de 2016

ATMOSFERA

Teu amor é uma nau pirata
No mar de estranhamento da minha vida.
Como evitar o assalto?

Meus olhos cedem, constrangidos e
a noite se faz mais fria.

Saio pela rua caminhando devagar,
O ar pesado paralisa-me os sentidos,
Sob lâmpadas elétricas morrem mariposas nervosas,
Um sapo imóvel olha-me sem piscar,
Rosas escarlates ofendem a paisagem pastel.

Nenhuma comoção, nem arrependimento...
Nem febre,
Nem demônios,
Nem tristezas de carmim,
Apenas a inquietude da misteriosa perda
Do que nunca tive.

Aposto em infinitos amantes
Perdidos no mesmo silêncio.



VERSOS PARA OUTUBRO DE 2016

Na esteira dos pecados
Senhores e dominados,
Abençoados por Deus!
Até chegar ao impasse
Da consciência de classe:
Loucura de Prometeu.

Capital e comunismo
E mais um mundo de ismos,
Arquétipos que vão caindo...
E na desculpa do sufoco
O povo devolve o fogo
Cobrado, ainda, no Olimpo.

IMPOTÊNCIA AGÔNICA

Quando bate aquela 
Agonia extrema
E você não para.
E então percebe
Quando já não desce
Que encheu a cara.

sexta-feira, 3 de junho de 2016

PERDÃO

Por favor, não me peça perdão,
Porque tudo já foi perdoado,
Só não consegui ficar calado
À tua cega incompreensão.

Esse amor, afinal, tresloucado!
Amor sem nenhuma explicação,
Que castigou um velho coração,
Acabou, assim, inacabado.

Não me peça perdão, isso dói,
Sabe-la triste, afinal, me corrói,
Mais, muito mais que o próprio fim.

Se não posso tê-la ao meu lado,
Faço um pedido, desesperado:
Deixe toda dor só para mim.

domingo, 22 de maio de 2016

A DOR QUE FICA

Luzia nasceu rica. Mais jovem e única filha de poderoso agricultor e pecuarista com terras em Mato Grosso, Paraná e São Paulo. A vivacidade era-lhe a marca mais evidente. “Muita vida!” Repetiam todos que a conhecia. Fez duas graduações concomitantemente, na PUC de São Paulo, em que deu cabo aos 21 anos incompletos. Viajou muito, enquanto pode, porque a primeira crise acometeu-a aos 22 anos, uma convulsão violenta. Passará, pouco antes, em concurso público e se revestia de entusiasmo contagiante pela docência de história e por diferentes culturas.
Tenho clara lembrança, ainda, daquela noite de domingo em que ficamos olhando as fotografias de suas viagens à França e ao Egito. Ela ria auto de observações das culturas que então conhecerá e depois se revestia de discreto rubor, e baixava os olhos de uma maneira muito particular, só dela. Foi esta, sem que eu saiba porquê, a imagem que me ficou, soberanamente. Ouvi dela que em qualquer cultura as pessoas adoecem por falta de amor.
Saíamos, ainda, nestes dias, com a parcimônia permissível, e nosso recanto predileto era o Cine Ouro Branco. Chorou quando assistiu “Noites de Cabíria” e se lamentou não ter conhecido a Itália. Choramos juntos, bem me lembro, mas por razões diferentes. Ainda teve, naquela noite, aulas de Fellini, no Cinelândia (não é no Rio, mas um bar em Presidente Prudente), em que todos a cercaram para ouvir os enredos dos demais filmes dele. Ela tinha sempre uma interpretação muito particular das coisas e ouvi-la falar, por exemplo, dos filmes do Glauber Rocha era melhor do que assisti-los.
A doença se agravou e se tornaram complicadas as saídas. Por muito tempo fui tido como persona non grata por seus pais e irmãos por conta mesmo das noitadas no teatro, cinema e no Cinelândia, onde a levava habitualmente, mas com o tempo só lhe restou a minha amizade, das muitas dos bons tempos, e sentia que todos agradeciam minhas visitas.
Passou dois anos nos Estados Unidos em busca de cura. Foi doloroso vê-la partir. Ainda conversamos muito no aeroporto e ela não perdia o humor, mesmo quando emperrou a engrenagem da sua cadeira de rodas e eu não soube arrumar. “Vou perder o avião e morrer aleijada e seca por tua culpa”, mas ria enquanto ironizava a situação. Os pais a repreendiam, mas eu compreendia seu exótico humor. Deixei-a na sala de embarque, em pé, esperançosa de que voltaria curada. Choramos na despedida, mas novamente por razões diferentes.
Só visitei-a um mês depois do seu retorno. Ela estava com 25 ou 26 anos e a situação se agravará significativamente. Perdera completamente o controle das pernas a ponto de ter que ser assistida continuamente, e a doença avançava, inutilizando-a. Mas ainda me recebeu com alegria e quis saber de tudo, do meu casamento, dos meus planos etc. Tinha uma coleção de marcadores de livros que guardará para mim, ao todo nove, com registro escrito das circunstancias em que os conseguira, muitas vezes em letras trêmulas. Prometi que a visitaria toda semana.
Não cumpri a promessa.
Quando a mãe dela morreu fiquei sabendo que o pai morrera pouco antes e fui visita-la. Ela então morava na casa do irmão que, por sua vez, administrava os bens herdados dos pais e pouco permanecia na cidade. Enfermeiras rodiziavam os cuidados e uma delas ainda se prestava a ler para ela, porque sentiu que isto lhe dava alguma alegria. Luzia perderá todos os movimentos e já não falava. Olhei-a nos olhos em que havia ainda vida e tentei até sorrir, mas uma lágrima deslizou lenta pelo seu rosto, muito pálido e magro. Talvez tenhamos desta vez chorado pelo mesmo motivo. Não sei.
Encontrei a cunhada dela, no shopping, na véspera deste Natal, depois de tantos nos. Ela caminhava com os netos e, como sempre, pairou certo constrangimento quando me viu, mas veio me saudar, alegre ainda. Eu quis perguntar de Luzia, mas não soube como fazê-lo, porque as palavras vinham combinadas e comprometidas com um sentimento meio que inexplicável de desculpa. Ela entendeu e sorriu, e acenou, gentil ainda, puxada pelas crianças.
Sentei-me ali, num daqueles bancos que há em corredores de shopping center, lembrando que deveria ligar para os meus filhos, meu neto. Não liguei. Pensei que deveria ir visitar Luzia naquela noite de 24 de dezembro, mas não fui. Fiquei depois sabendo que ela morrera justamente naquele Natal. Morrer, afinal é um nascimento, pensei comigo. Não chorei por falta de companhia.

sábado, 21 de maio de 2016

EMBRIAGUEZ

(à Cindy Silva Cossolin)

É assim: entre nós repousa sempre
a garrafa gelada de cerveja...
e aos poucos a pálida clareza
da vida, foge-me, completamente.

Ela ri, brinda, brinca, sempre atenta
aos copos cheios e à garrafa vazia
e se acaso a tristeza se anuncia
uma nova garrafa se apresenta.

O movimento avança noite adentro,
as coisas vêm e vão ao mesmo tempo
que as garrafas os copos engravida.

O paradoxo está que a bebedeira
mais que a incerteza, me traz a certeira
amizade maior que a própria vida.

sexta-feira, 13 de maio de 2016

TRÊS SONETOS DA ADOLESCÊNCIA

Há violinos no meu sonho requintado,
leve harmonia de cores nos meus sentidos,
quando instantes puros, ternamente vividos,
levantam-se, teimosos tornam do passado.

Vaga um segundo de dor pelo sepultado
e releio os livros já tantas vezes lidos,
no espelho da minha alma há mundos refletidos
e há fantasmas de ternura ao meu lado.

Mas já se estalam as cordas do meu violino
e turva-se em trevas o fundo alabastrino
quando te deslumbro do esquecimento vinda.

Desperto e solitário como um lobisomem
busco a noite que os segredos consomem
mas a tua imagem me persegue ainda.



Na humana coerência da razão
reajo como instável substância.
Dissipo-me no ar da imaginação:
do sonho e da vida, a reentrância,

mas permanece a insignificância...
vazio como uma bolha de sabão
eu tento encontrar meu coração
perdido numa reação na infância.

Vasculho o laboratório imenso
e incompatível a tudo repenso
e a alma perdida que não descansa.

Na desagregação da minha vida,
agitado busco a essência perdida
que existiu na pálida criança.



Que foi feito, Senhor, da tua criação?
Do exemplo de humildade de Jesus?
Da fé, amor e verdade da lição
que ele pregou a caminho da cruz?

Mas que poder e este que tanto seduz
que mina a miséria e a destruição?
Não brilha mais a divina luz?
Que foi feito, Senhor, da tua criação?

Que valor mais alto e mais forte
faz de homens agentes da morte,
escravos de um sistema opressor?

Que mentira e essa, cruel, profana,
nessa circunstância desumana
das injustiças do seu desamor?

domingo, 10 de abril de 2016

O CREPÚSCULO DO MACHO

            Tarde de domingo, anos passados, um tanto quanto cansado do papel e do vídeo do computador deslizei, como sempre faço, para a sinuca e a cerveja no Bar do Niversino. Nem precisava dizer que se trata de um ambiente muito diferente ao da Universidade. No bar, a verdade científica cai como uma inutilidade justamente pelo que valorizamos tanto na academia: a abstração. Ora, como João Antonio diria (não sei se ele disse): a sinuca é a vida. E a vida te solapa em toda a sua inteireza incompreensível, na medida em que se apresentam situações em que tudo que se há para dizer pode ser resumido àquela frase do celebre personagem de Suassuna: “não sei, só sei que foi assim!” O que narro, aqui, portanto é a mais lídima verdade, numa tentativa, bem sei que inócua, de se libertar da interpretação ideológica.
            Quando cheguei o jogo já havia começado. Atrasei-me. Ar pesado. Olharam-me com discrição, os quatro homens robustos em torno da mesa, e me cumprimentaram com respeito que eu interpreto principalmente pelo fato de ninguém me chamar de professor. Homens fortes e sérios, desse que falam de frente e quando falam olham nos olhos. Olhar incisivo que requer respeito e hombridade. O que não transparecia para quem não está acostumado com tal ambiente, mas para mim era óbvio, é que estavam todos muito bêbados como nunca vira antes. Mas vamos lá: “vamos jogar o jogo”.
“Vamos compor um manifesto”, disse-me um deles “e queremos que você o redija”. Fui tomado de grande surpresa. O jogo havia começado. Ora, eles estavam me pedindo justamente o que eu não tinha a menor disposição em fazer. Quando tentei esboçar um gesto de negação veio o Niversino com um tom mais sério do que de costume, dando-me a entender a gravidade da situação e me deixou um caderno amarfanhado e uma caneta. E me pus, na minha tarde de domingo e sinuca, a escrever o documento mais surreal da minha experiência de ficcionista, porque era verdade.
O texto que se segue, por fim, só têm de meu alguns adjetivos que inseri para não cair em repetições inadequadas e uma certa organização das ideias, tendo em vista que, por vezes, mais de um deles me falava ao mesmo tempo. O tom das falas era de veemência e austeridade, combinadas com um claro desequilíbrio por conta da embriaguez:

Vamos deixar de orgulho da virilidade inabalável e urgentemente aprovar a lei Chico da Penha (não pude conter o riso). É verdade. Não é para rir não. A situação é deveras preocupante e abala os alicerces da masculinidade, conferindo-nos a condição de capacho. A realidade não é o que parece, mas tudo uma armação feministoidemente construída e apoiada pela mídia, num processo de articulação em que se unem todas as minorias raciais e sexuais, com apoio da comunidade evangélica, das religiões afro-brasileiras e até do Papa. Está nisto, inclusive, um condicionamento coletivo que ameaça a língua semanticamente: ora, quando se diz “violência masculina” entende-se violência cometida pelo homem, mas quando se diz, em qualquer contexto, “violência feminina” não se entende, como deveria ser, violência cometida pela mulher, mas num manobra que ameaça qualquer coerência, entende-se violência contra a mulher. De qualquer forma, o homem paga o pato e todos os demais representantes da fauna e da flora. Em qualquer situação a mulher sempre é a vítima e o homem o culpado. Estamos indefesos contra um complô que desce às esferas do inconsciente coletivo. E nesse contexto a desculpa da tensão pré-mestrual é a mais leve. A condição masculina, na verdade, é de opressão e violência por parte do que sempre denominamos erradamente como “sexo frágil”, porque homem não bate em mulher, mas temos que nos defender de alguma forma sob pena de ameaça à extinção da espécie. Vamos ser realistas: nós nos tornamos o sexo frágil tendo em vista a revolução da palavra que cria verdade quando insistentemente repetida, como, aliás, Hitler praticou insistentemente. Vivemos numa sociedade tomada por infinitos e ferozes ditadores de saia. Até se defender de mulher é perigoso. Há muitos casos, como o de um lutador de Box, que ao erguer o braço por impulso de se proteger de uma vigorosa bolsada (ataque com uma bolsa de mulher) que voava ao seu nariz causou o retorno da referida arma ao rosto da atacante. O resultado foi um quase imperceptível sinal na pequena testa daquela que acabou se tornando a vítima! Verdade! A agressora se tornou a vítima só porque era uma frágil mulher. O lutador, por fim, que só praticava murros no ringue, apesar das marcas das bolsadas por todo o corpo teve de arcar com um reparo no rosto da dona da bolsa que o colocou em nocaute financeiramente e, além disso, padeceu de completa desmoralização profissional, por conta das alusões da “girada da bolsinha”. Vejam só. E não se enganem. Em qualquer caso deste tipo de violência, não se pode falar nada. Aliás, não se deve emitir nenhum som ou mesmo gemido por mais vigorosa que seja a surra que você, eventualmente, esteja levando. Temos um companheiro que foi condenado por “violência verbal”: ele gritou à esposa, mas assim o fez enquanto estava sendo covardemente espancado a vassouradas, porque a déspota não aprovou a limpeza que ele executara com a respectiva arma do crime. Ela o processou pelo grito, mas ninguém quis saber que o som nasceu-lhe da dor insuportável, porque, acrescente-se, era uma vassourona com cabo de ferro premeditadamente comprada com o claro intuito de tortura. Incrível que ela obteve ganho de causa. Foi assim! Ora, alegou a juíza: “homem não pode reclamar, nem sentir dor e muito menos gritar de dor”. Insensibilidade feminista da lei que se tornou corriqueira. Outro caso, entre milhares, foi de um estivador, na sua segunda jornada de trabalho, em casa, depois de voltar do porto, que foi queimado pela demoníaca mulher com o ferro de passar roupa, acusado por ela de não manejar adequadamente a ferramenta, e quando a facinorosa percebeu que o ferro, tirado da energia elétrica, não estava esquentando mais e queimando adequadamente, atirou-o na testa da vítima, provocando uma enorme cratera que lavou a casa de sangue. O desfecho da história é que ele foi severamente repreendido na delegacia da mulher por provocar stress na esposa e dores musculares nela pelo esforço que a atiradora teve para lançar o ferro de passar. É inacreditável, mas foi assim! Mas ele, diga-se de passagem, só foi arrastado para a delegacia por força policial depois de deixar a casa bem sequinha o que foi muito difícil, porque, além das queimaduras por todo o corpo, o sangue não parava de jorrar da testa aberta e sangue de macho, como sabemos, tem muita substância e é difícil de limpar. Teve, ainda, o desditoso estivador, como pena, de prestar serviço comunitário passando a roupa de toda a vizinhança (amigas da megera indomada), no sentido de treinamento da atividade e para não irritar mais a incontestável soberana. A delegada também o intimou a comprar um ferro de passar roupa mais leve, mas isto a celerada dispensou-o exigindo mesmo que o ferro fosse pesado. Sabemos bem da sua intenção.  Vamos lançar, portanto, nosso grito de revolta.

Houve silêncio geral. Eu não acreditava no que estava acontecendo. Niversino me trouxe mais cerveja. O jogo continuava, mas me acabou a disposição. Numa certa altura foram saindo rapidamente, mal se despedindo. Um deles, ainda, massacrou-me os dedos cansados da caneta e caminhou para o outro lado da rua onde uma mulher o esperava com as mãos na cintura. O jogo acabou, mas a vida continuava.
Vão anos o sucedido. Quando eu insinuava alguma coisa sobre o manifesto alguém errava a jogada. Nunca mais aquele clima, nunca mais aquele jogo. Neste último domingo, no entanto, o bar do Niversino estava fechado. Disseram-me que uma freguesa quebrou-lhe um prato na cabeça e todos estavam tentando descobrir o que ele havia feito. O gentil Niversino, o educado Niversino: o que ele teria feito? Coloquei-me a rir sozinho e resolvi publicar o manifesto. Vamos jogar o jogo.

domingo, 20 de março de 2016

METAFÍSICA DA REALIDADE ou CONVERSA DE BOTIQUIM

– Que foi, está nervoso?
            Silva entrará pouco antes, no bar do Niversino, sentou-se sem me cumprimentar, lançando-me um olhar de mau dia. Examinou a mesa e foi até o garçom. Voltou com um copo, encheu de cerveja que já ia pela metade. Pouca gente no lugar. E despencou a falar:
– Há uma ideia disseminada da existência de um segmento da burguesia, digamos assim, ortodoxos que lutam para se manter, aprioristicamente, uma separação de castas na sociedade, mas eu não sei, não sei no que acreditar. O pensamento liberal raciocina por esse viés, também, fiel á lei do mercado. Ouvi de uma senhora muito respeitável uma esdruxula argumentação, e ela disse isto na cara dura, que em outras circunstâncias (tempo histórico) ela poderia ter três empregadas pelo preço que agora só poderia pagar por uma, e tinha ainda as despesas trabalhistas. E argumentou convicta: “então, a coisa não piorou?” Eu não soube como responder, porque ela tirava essa execrável argumentação do fundo do seu piedoso coração de mãe e avó, vitoriosa na educação dos filhos e no cumprimento de suas obrigações religiosa e cívica. Mas, intimamente remoí a dolorosa conclusão de que ela não se importa com a corrupção desde que seja fruto da burguesia a que pertence e possa ter três empregadas pelo preço de uma e dar emprego ao povo.
As últimas palavras ele disse de uma maneira exasperada que me deu até medo e chamou a atenção dos demais clientes.
– Calma, do que adianta e tua indignação. Fica frio. Bebe ai, senão a cerveja esquenta.
Silva me fuzilou com o olhar. Abaixou a cabeça por uns instantes, esvaziou o copo num gole e, enquanto o enchia novamente e acenava para o garçom avançou no seu discurso, agora mais calmo. O garçom ficou parado ali, ouvindo:
– Sim, foram tantas experiências ditatoriais, um processo cíclico, que não permitiu um amadurecimento da democracia e penso mais, criou-se estruturas psicológicas doentias. Isto aconteceu em diversos períodos da história como foi o caso da ascensão de Hitler. É agora temos um segmento da sociedade que se coloca acima das instituições. Trata-se de uma burguesia elitista, autoritária, reacionária e que se realiza distinguindo castas na sociedade. O que eles gostam mesmo e de poder fazer caridade, mantendo a senzala.
O garçom, também, estranhou o tom com que Silva falava. Por fim, comentou sorrindo enquanto deixava a cerveja:
– Espero que não seja minha culpa.
Havia tanta sinceridade em suas palavras que o ridículo da situação foi coberto por uma atmosfera outra, mesmo porque Silva, já mais calmo, permaneceu com o copo vazio, meio que alheio. Por fim, disse:
– Não há culpa individual. Talvez seja até um condicionamento tolo falarmos das nossas elites retrógradas de tanto que tal assertiva foi propalada aos quatro ventos, não é? Mas o fato é que fomos o último país, depois de Portugal e dos Estados Unidos, a se livrar da mácula da escravidão. Sem contar a história do latifúndio, do coronelismo e do voto de cabresto, dos currais eleitorais etc. Talvez o que estejamos vivendo seja resquício dessa tradição cultural de dominação, forças arquetípicas em que não há uma evidência óbvia, mas trazem subjacente uma saudade dos estamentos sociais. Só há uma maneira, aliás, de identificar culpados: a autoconsciência. Acabo de descobrir que a culpa é minha.
Riram.
Silva ficou em silêncio, encheu o copo, mas não bebeu. Recostou-se na cadeira respirou fundo. O garçom procurou consolá-lo:
– Não fique triste seu Silva. Põe na mão de Deus que ele resolve.
Aprovei as palavras do garçom com um sorriso, mas não era o teor do seu discurso que eu ratificava, mas a benevolência, a amorosidade, a paz. Os olhos de Silva brilhavam e ele disparou eufórico, chamando a atenção de todos.
– Sim! A culpa é dos deuses!
Novamente o garçom:
– De Deus, seu Silva, mas Deus nunca tem culpa. São os nossos pecados... Reze que a coisa melhora.
Houve um burburinho geral de aprovação. Silva levantou-se como que pronto para a luta, apoiou-se na mesa, olhou para mim e depois para o garçom e disse como quem descobre a verdade:
– Submissão à Moira, nas máscaras circunstanciais da Ananké.
Silêncio geral. Alguém gritou:
– Mas que diabo você está falando ai, Silva.
Estrondosas risadas. Silva sorriu e concluiu:
– Eu quero mais cerveja. 

quinta-feira, 10 de março de 2016

O MURO

Parou de súbito. Já vinha, aliás, a passo lento. Buscou o banco providencial e recostou-se, porque a meditação exigia conforto. Do outro lado da rua, um muro, quebrado, sujo... Era somente um muro velho que escondia um terreno ocupado pelo mato. Bem, ele supôs que o terreno estava vazio e o mato crescia lá dentro.
Três anos havia se passado. Fora em setembro em que esteve em São Paulo, ainda casado. Ela, de branco naquela tarde entrou numa exposição de quadro, carregando-o a reboque. “Vernissage”, ela disse. “Vernissage”, ele repetiu tentando demonstrar algum interesse, mas o tédio não o deixava. A coisa se agravou quando ela se demorou por demais olhando um quadro que lhe parecia absolutamente insignificante. “O que você vê”, perguntou ela. Ele sorriu amarelo e não respondeu. Meu Deus, que sentido havia naquilo tudo? Tinha pressa de se livrar daquilo. “Mas o que você sente?” insistiu ela. Ele continuou sem responder. Tentava ver se havia onde tomar um café na instalação daquele prédio antigo. Ela segurou-o pelo braço e havia súplica nos seus olhos. Ele então teve de responder e foi uma resposta bem significativa de tudo que ele sentia. Não sentia nada, na verdade. “Veja”, disse ele, “trata-se de um borrão cinza num fundo branco”.
Ela continuou andando sem se preocupar mais com ele.
– O que foi que eu disse?
– Não foi o quê, foi como.
– Ninguém é obrigado a se deliciar com abstrações.
            O muro velho estava ali, escondendo o terreno baldio. Nos fundos do terreno, um prédio corpulento e relativamente baixo para os padrões da cidade. À direita e à esquerda do prédio construções novas, de cores claras. O que estava fazendo aquele muro velho ali? Por que ainda não o derrubaram?
            Ela, toda de branco... A pele muito clara, também... Os cabelos claros...
            As pessoas passavam indiferentes ao velho muro, mas ele estava ali: estranho, até grotesco. Um menino carregava uma bola e quando estava diante dele, pôs-se a chutá-la contra o muro e ele a devolvia. Dez, quinze metros de pura diversão. E o menino, percorrido o espaço do muro, tomou a bola novamente nas mãos e, novamente, se fez sério.
            Um catador de latinhas recostou-se nele. Decerto não se atreveria a ficar diante das construções novas, mas o muro o protegia. Não deveria haver catadores de latinhas, sujos, a perambular pela cidade, como aquele muro era uma aberração arquitetônica. Um outro mendigo aproximou-se, tinha uma garrafa nas mãos, embrulhada em um saco de papel. Olhando bem, via-se que a calçada na região do velho muro estava mais suja, e havia rachaduras no cimento.
            Curioso que haviam colocado um banco diante do velho muro, no outro lado da rua. E o seu pensamento voltou-se para o vernissage. Lembrou-se que a perdera por alguns minutos e quando a encontrou novamente ela disfarçava uma lágrima. As mulheres são muito sensíveis. Não deu muita importância para a situação, porque, certamente a noite, o cinema, ou o teatro, a animaria. E não pensou mais no assunto. Pensava agora, três anos depois, diante do velho muro. Bem, ela deveria apreciar aquela paisagem, já que ficava procurando a significação das coisas.
            Levantou-se devagar, atravessou a rua sem pressa, e parou em frente ao velho muro. Os mendigos já se tinham ido, senão conversaria com eles, irmanados pela solidão, os abraçaria, talvez.
E, por um instante, viu-a caminhando diante do velho muro, toda de branco, ela muito branca também, os cabelos claros. Insistiu na miragem, saboreou a saudade, e ela desapareceu depois diante às construções novas e claras, como um borrão cinza sob um fundo branco.
Chorou.

quarta-feira, 2 de março de 2016

VIDA

Este poema veio à luz a partir da conversa que tive, pelo facebook, na noite de primeiro de março (ontem), com Barbara Nunes, sem que, no entanto, nada dos arroubos do eu-lírico tenha a ver, necessariamente, com ela, no que se refere ao dramático, mas tudo a ver no que se refere ao trágico. Dizendo de outra forma, ela me emprestou uma experiência que está subjacente a situação dramática que eu criei. 


VIDA
(à Barbara Nunes)

I
Ainda olhou-me profundamente antes de sair
De mãos vazias,
mas levou consigo alguma coisa de tal forma que
todos os objetos da pequena sala
olharam-me com grande reprovação.
O relógio de parede gritava-me um comunicado urgentíssimo
a tal ponto que as horas
tomaram um sentido de segunda ordem,
em favor à mera existência mecânica.
Afundei-me na poltrona que se tornou enorme
e abraçou-me com força crescente
num lento estrangulamento.

II
A sorte lhe foi madrasta, afinal.
Trazia um sentido claro das coisas e da vida.
Tinha medo de ser feliz e não saber.
Vivia e sofria
revel a aceitação contraditória.

O amor!?
Não o viveu impunemente
como o fazem os fracos de inteligência e
os pobres de espírito.
Não o viveu com egoísmo ou com negligência.
Deu-se de corpo e alma
a ponto de esquecer-se.

Os referenciais estúpidos da sociedade
não tiveram sobre ela efeito algum.
Fiel àquele sentimento primeiro
que gritava dentro de si.

Toda poesia se esfacelava diante dela.
Poesia viva,
ela própria
que não carecia de palavras.

A palavra, porém,
por mais que perdesse o vigor diante dela
é-lhe de um valor terrível,
de vida e de
morte.

Sua vida, sim, tem sentido.
Sua vida dá sentido à vida.
Sua morte, um dia, será um acontecimento
e aqueles que a conheceram, como eu
acordarão diferentes
só de imaginar a sua ausência.

III
O quarto escuro e o silêncio,
meu coração e o silêncio...
O vento agitando as folhas das árvores, levemente...
O primeiro pássaro, na primeira madrugada...
Um cão ao longe,
ao longe um grito,
longe, muito longe.

A água escapando da torneira
envolvendo delicadamente a mão que a busca e que a leva ao rosto
será outra.
Será outro
o rosto que se dá ao espelho,
como um enigma decifrado.
A luz que entrará pela janela
será de um sol estranho
e as coisas todas que a receberão
refletirão está luz cortante
só de pensar na sua ausência.

IV
Choraria longamente
do flagelo irreparável
da sua falta
se não houvesse descoberto,
de repente,
a Vida.

segunda-feira, 29 de fevereiro de 2016

PESADELO AMOROSO

Conversando com um jovem estudante da UNEMAT, ele me externou um conflito de ordem amorosa e eu procurei algumas rimas, num soneto decassílabo, para tratar da situação. Manterei o sigilo do confessionário.

PESADELO AMOROSO

Quando a noite cair eu a verei
Percorrendo, calada, o corredor
E reconhecerei nela aquela dor
Que, afinal, eu nunca entenderei.

Sonho, no entanto, que decifrarei
A raiz misteriosa desse amor
E deixarei flores em seu favor
Como alguém que consagra uma lei.

Sonho-a, então, parando à minha frente,
E me beijando muito alegremente
Como quem se dá conta do destino.

Mas a realidade me desmente
E lá está ela gritando firmemente:
 “Saia do meu caminho, seu cretino”.

terça-feira, 23 de fevereiro de 2016

A MÁSCARA

Dormi profundamente a ponto de acordar bem humorado no domingo e me sentir com disposição de ir à feira livre: os sentidos todos acordados. Na verdade, a feira a que me refiro não é tão livre, como aquelas da minha infância que se fazia na rua. Está é protegida do sol por uma armação de ferro e concreto, coberta com zinco e ocupa o espaço de um quarteirão. Os feirantes não têm que armar a barraca, mas apenas distribuir sua mercadoria nos espaços a eles reservados. Uma liberdade relativa.
            Na verdade, não era comprar que me levava, às vezes, àquele ambiente, misto de comércio e natureza, mas um sentimento de harmonizar as duas coisas, o cheiro das verduras e frutas, o colorido dos vegetais, a simplicidade dos feirantes que chegava a ser de uma grosseria suave. Entende-se o sentido da liberdade quando se está preso. Havia, na verdade, mais de natureza do que de comércio, ou pelo menos mais de ruralidade em detrimento à urbanidade. Por toda parte um espetáculo aos olhos, a cada canto uma surpresa como se as frutas também olhassem os homens.
            Deixei-me entreter pelo passeio, então, com esse espírito de me libertar da necessidade de comprar fosse o que fosse. Aliás, trazia o desejo mesmo de negar os paradigmas consumistas. Vi, então, sentando a um canto, um homem robusto, vestido simplesmente, entalhando um pedaço de madeira de forma circular como um cabo de ferramenta. As mãos, de uma agilidade incrível, parecem que se moviam desarticuladas do resto do corpo. Ao verificar o quadro todo notei, também, que o homem não olhava às próprias mãos, como se elas soubessem o que fazer sozinhas. Aliás, apesar da manhã radiosa havia pouca luz naquele canto, dada à particularidade da construção. Não vou entrar em detalhes, porque não quero um conto naturalista.
– Examine isto?
Assustei-me. Era um jovem barbudo que me falava. Tinha gentileza nos olhos e uma pequena escultura nas mãos. Era uma imagem de Jesus.
– Foi você que entalhou?
– Não, eu somente a pintei. O entalhe é de Bart. E me apontou o homem de mãos ágeis.
A pequena imagem de Jesus era um trabalho de uma precisão impressionante.
O jovem barbudo, com gentileza nos olhos, não estava mais ao meu lado. Aproximei-me então de Bart para conversar, mas não cheguei a dizer nada e ele simplesmente ignorou minha presença, envolvido no que estava fazendo. Ao seu lado havia outra escultura, era esta somente do rosto de Jesus, uma espécie de máscara sem nenhuma pintura.
Bem, eu nem sei dizer por que associei aquela imagem também a Jesus, porque não havia nada em comum com a figura europeizada, consagrada pelos renascentistas, que somos acostumados a entender como sendo o rosto de um judeu, submetido ao escaldante sol da Galileia. Tomei-a nas mãos. Havia alguma coisa de rusticidade, que transcendia a própria imagem e dava àquele Cristo um ar quixotesco e apaixonado. E me veio um sentimento de calma e desespero ao mesmo tempo. Não sei quanto tempo fiquei ali, com a pequena máscara nas mãos, apreciando os contornos duros. Lembrei-me das imagens barrocas do Aleijadinho, mas nesta havia um elemento de simplicidade que captava a dor de um Cristo que, talvez, não teria o consolo da paz eterna, que trouxesse em si toda a tragédia humana do desespero da busca. Não havia a tradicional mansidão no olhar, mas uma profunda perturbação. Muitos anos depois, a imagem daquela máscara penetraria na minha alma e se tornaria verdadeiramente inspiradora da vida e aquele domingo inesquecível.
– Então, vai levar? - Perguntou-se o jovem barbudo.
– Eu queria essa máscara.
– Ainda não está terminada.
– Mas eu não posso compra-la assim mesmo, sem que esteja terminada.
Fiquei sem resposta.
– Este escultor enxerga para além dos olhos - argumentei, tentando justificar o meu desejo de comprar a máscara.
E o moço que parecia o empresário do escultor respondeu, para meu espanto:

– Sim, meu amigo, ele é cego.

domingo, 14 de fevereiro de 2016

A XÍCARA

Amor! Sentimo-nos pequenos diante desta pequena palavra e sua pluralidade de significações. Rios de tinta, em verso e prosa, já se gastaram tentando envolve-la (o referente): à luz da lua e das estrelas, não é? Sentimento contraditório, antitético, ambíguo, paradoxal (o referido), que bate duro na nossa consciência, mandando ao inferno toda a laboriosa racionalidade que tentamos imprimir às nossas vidas: e que venha a dor do amor. Inevitável. Aliás, o amor é o ponto fulcral em qualquer tentativa de análise da complexa natureza humana.
Bem, tais reflexões nasceram de um encontro que tive com um velho amigo: viúvo, cinquenta anos, boa pessoa. Pois é, contou-me sua história: envolveu-se com uma estudante de 23 anos que o colocou a rever todos seus velhos valores. Creiam que eu conto a coisa com a maior isenção, apesar de abster-me do discurso direto. Amor brutal destes que botam a gente insone, anoréxico, desorientado. Todos já, pelo menos uma vez na vida, experimentaram o veneno, mas aos cinquenta a coisa beira ao ridículo. E, disse-me ele, que se fez uma relação daquelas em que os envolvidos não se aceitam, mas não se largam: ciúme crônico de ambos os lados; intervenção dos familiares com baixarias homéricas e vexames públicos. Mas a relação se sustentou, apesar de tudo, por mais de um ano. Estavam lá a comemorar os quatorze meses quando ele a pega numa dessas salas de bate-papo da internet. Na verdade, eu não sou bom para falar dessas novidades. Bem, o meu amigo ficou escandalizado com o nível da conversa que a sua namorada mantinha no referido espaço virtual com um gajo desconhecido. Bem, se fosse conhecido não mudaria muito a situação. A moça não procurou esconder nada e reagiu com espanto ao desagravo dele. E o conflito estendeu-se à concepção de amor, abrindo um enorme abismo entre o casal.
            Separaram-se. Era definitivo. Encontrei-me com ele, aliás, quando batia nesta tecla, inconformado: a concepção de amor. Davi, gritava-me ele, “o que é o amor? Quais os limites do amor?” E todas as tentativas que me vinham de abordar o problema tornavam-se inócuas, vazias, circunstanciais. Bem, tenho praticamente a mesma idade que o meu desgraçado amigo e o que se insinuou foi a certeza de um anacronismo cruel. Não havia como acalmar-lhe, pois, o espírito já que eu padecia da mesma perplexidade. Mas como sair de cena? Os tempos mudaram drasticamente. Novas palavras foram assimiladas pelo dicionário amoroso: a amizade colorida, o ficar, o sexo ocasional etc. O sentimento duradouro apequenou-se em contato físico simplesmente ou chegamos a um estágio de desligamento de ambos? Ele se riu então tentando disfarçar a dor que escapava discreta, dos olhos. E contou-me que ela havia ligado, delicada, amorosa, dizendo-lhe que o amava muito: “com os outros era apenas sexo”. Ela disse exatamente com estas palavras. Engoliu seco. Silêncio. Risos. Silêncio. Exclamação: meu Deus!
            Se agora a minha narração torna a situação engraçada, ridícula mesmo, ali, naquele banco no shopping center diante de tanta cor, consumo senti-me estúpido e anacrônico. Um sentimento fundo de solidão e tragédia. Mas não deveria ser eu a estar sofrendo. “Vamos tomar um café”, finalmente ele quebrou o clima que se fazia tenso.
O café, apesar daquela xícara redondinha que engana a quantidade, era mesmo café, tinha gosto de café. Se fosse naqueles copinhos de dose que se serve nos bares seria melhor, mas eu agarrei a xicrinha, desajeitado, e quis me afeiçoar a ela como quem resiste, num último desejo de adaptação. Ele se riu muito como se adivinhasse o que me ia pela alma. Agora sei que entendia tudo, muito melhor do que eu. Acompanhei-o, por fim, até o carro e fui a pé para casa, como sempre. Que diabo, a namorada era dele e não minha, mas o estrago estava feito e, estranhamente, eu havia queimado os dedos.
Encontrei-o poucos dias depois, passeando com a referida namorada, de mãos dadas. Sorria. Cumprimentei-o, mas ele não me viu.

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2016

NO LÍMITE

O que dizer do limite do amor?
O tempo suspende o momento
Na impossibilidade de qualquer resposta.

Toda a verdade possível
É uma martelada na vida
Por força de todos os condicionamentos,
Mas você deixa teu corpo ficar
E eu busco teu beijo esquivo.

O corpo entende muita coisa, não é?

Amanhã morreremos.
Morrerão nossos filhos,
Morrerão os filhos dos nossos filhos.
Morrerá esta estrela
Desta insignificante galáxia
Em que este amor se deu.

Esse amor
Que existiu
No limite.

Num outro planeta,
Num futuro imensurável
A essência da vida
Consumar-se-á
Na falta de qualquer explicação.

Descansa teu corpo e aceita meu beijo.

terça-feira, 5 de janeiro de 2016

DISCURSO DE UM DEFUNTO

            Ele já estava no caixão, no cemitério, quando começou a falar. Foi um pandemônio, um “Deus nos acuda”.
“Perdoem-me, preciso falar, ainda que morto”.
O fato é que ficaram muito, muito poucos para ouvi-lo e alguns corriam, mas depois, passado o susto voltavam para, por vezes, fugir novamente. O ritmo da fala do morto, no entanto, não se abalava à gritaria. A viúva desmaiou sem que ninguém a socorresse, nem mesmo a filha apalermada que parecia mesmo com impulsos de abraçar o defunto. Ele, no entanto, não dava conta da audiência e falava com voz fraca, mas firme.
“O sentido da sobrevivência, combinada com a necessidade intrínseca da convivência estabelece aquilo que chamamos de ética. O nossos valores… renunciá-los seria a despersonalização… a desindividuação… destruir as particularidades que nos caracterizam como fenômeno único. Somos o que acreditamos. Seguimos um norte: a vida nos impõe. A vida… A Vida! Amigos, inimigos, ouçam-me: estou vivo! Estou vivo e sou assim! Sou Eu!”
Não apontava ninguém precisamente, mas os olhos brilhavam com tal fulgor que imobilizava os que conseguiam não fugir da situação.
            “No entanto, a iniludível, a indesejada das gentes… Ah… convivemos com ela a partir do momento que nascemos. Um temor cego que, no entanto, não impede que a força do meu braço arroste o inimigo e abrace os amigos”.
            “Há nas nossas vidas um momento único em que nos deparamos frente a frente com a morte. Tudo, nesse rápido instante, passa a fazer sentido. Revemos, então, todos os nossos dias numa vertiginosa seqüência de flashes. O homem mais insignificante, mais prosaico, mais absolutamente alienado percebe a sua grandiosidade, se torna verdadeiramente Deus! Eis a vida. Neste lúcido momento, todos os seus caros valores, arduamente carregados montanha acima, rolam montanha abaixo, mas, ao contrario de Sísifo, ele sorri. Ele se tornou bastante forte e bastante grande para, como um Voltaire divino, rir de tudo”.
            “Esse momento que você ainda não viveu, eu vivi! Eis-me, pois, a rir de tudo. A sofreguidão dos que ficaram, sofrendo e chorando até a redenção. A mão que me matou… A boca que beijei… Ah… tudo é nada!”
            “Mas não se pode ser morto por completo quando se esteve tanto tempo vivo. Não por vaidade, ou por costume, ou coisa que os valham. Não… Deixe-me que vos diga, que me sobraram alguns anseios de dizer ainda algumas verdades por mais que as despreze. Deixa-me que vos diga a única razão que me faz querer voltar a viver pelo menos por um trêmulo momento: o perdão! Sim, o perdão. Perdoar todos os meus inimigos, abraça-los, renunciar a mim mesmo neste momento máximo em que me encontro comigo”.
            “Eis a renuncia, a libertação, a transcendência, a verdade transfiguradas no gosto humano do perdão.”
            De fato, ele, pouco depois, já em casa, recuperando-se, juntamente com a esposa e a filha, não dava conta de lembrar os detalhes do discurso. Foram os menos assustados, não necessariamente os mais próximos, que reconstituíram as palavras do morto, no bar do Niversino. Ele participava sorrindo e jurou que nunca tinha lido Manuel Bandeira.
            Ele, de fato, foi morrer passados treze anos, de um ataque fulminante, depois de uma rusga com um compadre por causa de uma velha dívida. O enterro foi solene e não teve discurso.

domingo, 3 de janeiro de 2016

CONSCIÊNCIA (soneto dedicado a minha morte)

Madrugada enluarada. Muito frio,
Voltava para casa, embriagado,
Quando vi, caminhando ao meu lado,
Uma jovem mulher de corpo esguio.

E tentei disfarçar o meu estado,
Tomado de um estranho arrepio,
Porque era tudo solidão e vazio
De um enorme céu claro e estrelado.

Entendi o que queria a desconhecida
Que me olhou calma e enternecida
É me apontou o caminho para o norte.

Ironia. Confessei na despedida:
Sei bem que tu me apontas minha vida,
Sei bem que minha vida é a morte.

Este soneto fluiu do relato de um velho camarada, bem como da minha recente inserção ao terror e a bruxaria, por conta do trágico que é a minha praia. E vamos vivendo sem nenhuma pressa, mas rompendo os paradigmas em nome da consciência do inevitável.

sexta-feira, 1 de janeiro de 2016

BELEZA

– Beleza, irmão!
            Um cara, que eu nem lembro o nome, largou um envelope na minha mão e uma moedinha e foi saindo. Disse ainda alguma coisa que eu não entendi. A fila estava enorme… da agência do correio da Vila Mariana. Fazia um pouco de frio em São Paulo, e, de repente, eu sentia falta de ar. Não tinha jeito, tinha de enfrentar a fila e agora ainda esse cara. Suas palavras, então, caíram na minha frente com um estrondo. “Irmão”?! Beleza!!! Que diabo.
            Uma mulher que entrava olhou para mim com espanto. Pensei que pudesse estar falando sozinho e chamando a atenção. Às vezes tenho medo de estar ficando louco. A mulher gorda caminhou para um canto do balcão e de lá voltou a olhar pra mim. Dane-se. Talvez a conheça? Não. Definitivamente não a conheço. Talvez a minha expressão a tenha assustado. Está frio e abafado e eu tenho sono. Não vejo mais a mulher gorda, a fila não anda… Beleza! Que ironia…
            Olho a carta do imbecil. O nome do cara é João e a carta é para sua… sua majestosa namorada. Tivemos uma conversa dias passados, agora me lembro, e ele me contou da beleza estonteante da dita cuja. Eu a vi e até conversei com ela, realmente é muito bonita, os olhos claros, a pele rosada e aqueles joelhos fortes… Diabo de fila que não anda.
            Acidentalmente deslizei a ponta da carta nas costas da moça que estava na minha frente na fila. Ela tomou um susto e se encolheu.
            – Mi desculpe.
            Ela me lançou um sorriso amarelo e eu dei conta que com aquele frio ela estava com metade das costas expostas. Estava com frio, sem dúvida. E fiquei distraído, olhando as costas nuas e arroxeadas de frio de uma moça desconhecida, na fila do correio. Não era como a pele da namorada do João, não, não era. Apesar de esta ter um encanto rústico. Tinha uma cicatriz… discreta, perto do omoplata esquerdo. A minha colega de fila não era feia, apesar de ser por demais magra, apesar da cicatriz. Compunha um conjunto que no todo era agradável. A saia preta… curioso que as pernas eram de um tom de pele diferente das costas. Talvez fosse o sol. Talvez, longas horas expostas ao sol. Voltei-me um pouco para ver seu rosto. Tinha uma expressão triste e dois grandes olhos mortos. Dizem que as pessoas percebem quando estão sendo olhadas, porque a moça se virou para mim e me olhou com tamanha intensidade que estremeci. Até pensei em me desculpar, mas ela se abriu num sorriso de olhos que iluminou tudo. E ficou linda, realmente linda. A beleza da namorada do João ficou opaca. Estranhamente tive medo. Tive medo do que sentia, num estrondo.
            – Você me poderia fazer um favor.
            Seus olhos sorriam. Eram de um castanho agora vivos, da mesma cor dos cabelos. Era o conjunto que nela era bonito. Tive medo de fato. É estranho como se operam os sentimentos. Toda a previsibilidade pode ruir de repente. Beleza.
            – Você poderia colocar está carta para mim. Eu vou perder um compromisso muito importante.
            – Tudo bem.
            Ela ainda lançou uns olhos de ternura e agradecimento e foi saindo. Eu fiquei olhando ela sair ao mesmo tempo em que sentia uma grande dor pelo mundo, pelas pessoas que eu não conhecia e que sofriam, pelas crianças pobres, pelos velhos mendigos. Um turbilhão de recordações me assaltou em flashes rapidíssimos. Os mortos vieram todos: meu pai, seu grito rouco na madrugada ainda escura, o cheiro do café e as risadas da minha mãe. As ruas escuras de Brejo das Almas. O cheiro do esterco, do alecrim, a saraivada de fogos em noite de São João. E Rita que nunca mais vi. E minha irmã… Tive uma absurda vontade de chorar, como quando minha mãe morreu, e eu vi meu pai aos poucos enlouquecendo. Porque perdemos as coisas que amamos? E todos os grandes sentimentos da minha vida me pareceram pequenos.
            – O próximo.
            Um sujeito me deu um tapa no ombro. Tive um sobressalto, mas agradeci e caminhei para o guichê. Caminhei como quem vai para o abate. A vida continua! Caminha infeliz! Beleza!
            – Esta carta não tem destinatário.
            Eu não pude conter o riso. Era a carta dela, com o nome e o endereço da remetente. E eu não me importei que pensassem que eu sou louco. Um carta sem destinatário? Eu sou teu destino.
            — O próximo.
            Bem, isto aconteceu há muito tempo. Voltei para Minas. Moro hoje em Belo Horizonte: há três anos. Há três anos Camila morreu, ainda em São Paulo. Aposentei-me e fugi para esquecer. Tudo ao meu redor me falava dela. Tenho um emprego que funciona com uma pequena compensação de sua enorme ausência. Escrevo um artigo semanal chamado “Flashes do cotidiano” no Diário de Notícias. Casei-me com Camila cinco meses depois daquela manhã no Correio da Vila Mariana. Camila, deixe que vos conte e feche o fio desta emaranhada história… Camila era a namorada do meu conhecido, João. Sim, casamo-nos. Ele nunca me perdoou. Camila, a bela Camila, iluminou meus dias com sua beleza e sua alegria até que uma doença fulminante a levasse de mim. Ela sorria, ainda, atravessada pela dor, a última vez que a vi. Tivemos uma filha, linda como ela.
            Nunca falei a Camila do momento que definitivamente nos uniu. Um culpa sem remissão que latejou nos meus momentos de maior lirismo. Sai do correio e beijei aquela carta, com aqueles olhos castanhos brilhantes, brincando no horizonte. O vida então me pareceu digna de ser vivida. Era como se a luz daqueles olhos iluminasse os recantos escuros da minha consciência, fazendo livre, e forte, e grande. Sentei-me num banco e as árvores todas foram muito amáveis com um verde que eu nunca tinha percebido tão verde. São Paulo, a triste e rude São Paulo, parecia-me então a Veneza dos namorados. Beleza! Certifiquei-me do endereço. O nome? Este pouco importa. Haverão de me compreender quando eu terminar o meu relato.
            Bati no endereço indicado. Era bem perto. Qual foi o assombro quando Camila me atendeu. Riu muito da carta sem destinatário. A remetente era sua mãe, a senhora gorda que longamente me examinou no correio. Num primeiro momento foi um choque sem proporções. Tornamo-nos, porém, grandes amigos. Quanto a moça que eu procurava, ninguém me soube do seu paradeiro, nem mesmo seu nome. Segundo me contou minha futura sogra: ela vinha cansada, aparentava sentir frio, pediu água e, depois de um pouco de conversa sobre caminhadas, ofereceu-se para levar a referida carta já que o correio estava no seu caminho. Pouco depois, por outros motivos, minha sogra teve mesmo que sair e confirmou que realmente a moça desconhecida incumbira-se da tarefa. Ela ainda me contou que pensou em agradece-lhe e tomar seu lugar na fila, mas intuiu que não devia. É, tem coisas que a gente não explica.
            Pois é, estão todos mortos e eu penso como nunca voltar para Brejo das Almas. Dei para escrever tudo isto impulsionado por uma desejada e inesperada visita. Afinal, por uma destas ironas da vida, o meu mais caro, querido, fiel e constante amigo, nesta manhã fria de junho, exclamou ao romper à porta:

            – Beleza, irmão!