domingo, 20 de março de 2016

METAFÍSICA DA REALIDADE ou CONVERSA DE BOTIQUIM

– Que foi, está nervoso?
            Silva entrará pouco antes, no bar do Niversino, sentou-se sem me cumprimentar, lançando-me um olhar de mau dia. Examinou a mesa e foi até o garçom. Voltou com um copo, encheu de cerveja que já ia pela metade. Pouca gente no lugar. E despencou a falar:
– Há uma ideia disseminada da existência de um segmento da burguesia, digamos assim, ortodoxos que lutam para se manter, aprioristicamente, uma separação de castas na sociedade, mas eu não sei, não sei no que acreditar. O pensamento liberal raciocina por esse viés, também, fiel á lei do mercado. Ouvi de uma senhora muito respeitável uma esdruxula argumentação, e ela disse isto na cara dura, que em outras circunstâncias (tempo histórico) ela poderia ter três empregadas pelo preço que agora só poderia pagar por uma, e tinha ainda as despesas trabalhistas. E argumentou convicta: “então, a coisa não piorou?” Eu não soube como responder, porque ela tirava essa execrável argumentação do fundo do seu piedoso coração de mãe e avó, vitoriosa na educação dos filhos e no cumprimento de suas obrigações religiosa e cívica. Mas, intimamente remoí a dolorosa conclusão de que ela não se importa com a corrupção desde que seja fruto da burguesia a que pertence e possa ter três empregadas pelo preço de uma e dar emprego ao povo.
As últimas palavras ele disse de uma maneira exasperada que me deu até medo e chamou a atenção dos demais clientes.
– Calma, do que adianta e tua indignação. Fica frio. Bebe ai, senão a cerveja esquenta.
Silva me fuzilou com o olhar. Abaixou a cabeça por uns instantes, esvaziou o copo num gole e, enquanto o enchia novamente e acenava para o garçom avançou no seu discurso, agora mais calmo. O garçom ficou parado ali, ouvindo:
– Sim, foram tantas experiências ditatoriais, um processo cíclico, que não permitiu um amadurecimento da democracia e penso mais, criou-se estruturas psicológicas doentias. Isto aconteceu em diversos períodos da história como foi o caso da ascensão de Hitler. É agora temos um segmento da sociedade que se coloca acima das instituições. Trata-se de uma burguesia elitista, autoritária, reacionária e que se realiza distinguindo castas na sociedade. O que eles gostam mesmo e de poder fazer caridade, mantendo a senzala.
O garçom, também, estranhou o tom com que Silva falava. Por fim, comentou sorrindo enquanto deixava a cerveja:
– Espero que não seja minha culpa.
Havia tanta sinceridade em suas palavras que o ridículo da situação foi coberto por uma atmosfera outra, mesmo porque Silva, já mais calmo, permaneceu com o copo vazio, meio que alheio. Por fim, disse:
– Não há culpa individual. Talvez seja até um condicionamento tolo falarmos das nossas elites retrógradas de tanto que tal assertiva foi propalada aos quatro ventos, não é? Mas o fato é que fomos o último país, depois de Portugal e dos Estados Unidos, a se livrar da mácula da escravidão. Sem contar a história do latifúndio, do coronelismo e do voto de cabresto, dos currais eleitorais etc. Talvez o que estejamos vivendo seja resquício dessa tradição cultural de dominação, forças arquetípicas em que não há uma evidência óbvia, mas trazem subjacente uma saudade dos estamentos sociais. Só há uma maneira, aliás, de identificar culpados: a autoconsciência. Acabo de descobrir que a culpa é minha.
Riram.
Silva ficou em silêncio, encheu o copo, mas não bebeu. Recostou-se na cadeira respirou fundo. O garçom procurou consolá-lo:
– Não fique triste seu Silva. Põe na mão de Deus que ele resolve.
Aprovei as palavras do garçom com um sorriso, mas não era o teor do seu discurso que eu ratificava, mas a benevolência, a amorosidade, a paz. Os olhos de Silva brilhavam e ele disparou eufórico, chamando a atenção de todos.
– Sim! A culpa é dos deuses!
Novamente o garçom:
– De Deus, seu Silva, mas Deus nunca tem culpa. São os nossos pecados... Reze que a coisa melhora.
Houve um burburinho geral de aprovação. Silva levantou-se como que pronto para a luta, apoiou-se na mesa, olhou para mim e depois para o garçom e disse como quem descobre a verdade:
– Submissão à Moira, nas máscaras circunstanciais da Ananké.
Silêncio geral. Alguém gritou:
– Mas que diabo você está falando ai, Silva.
Estrondosas risadas. Silva sorriu e concluiu:
– Eu quero mais cerveja. 

Nenhum comentário:

Postar um comentário