terça-feira, 23 de fevereiro de 2016

A MÁSCARA

Dormi profundamente a ponto de acordar bem humorado no domingo e me sentir com disposição de ir à feira livre: os sentidos todos acordados. Na verdade, a feira a que me refiro não é tão livre, como aquelas da minha infância que se fazia na rua. Está é protegida do sol por uma armação de ferro e concreto, coberta com zinco e ocupa o espaço de um quarteirão. Os feirantes não têm que armar a barraca, mas apenas distribuir sua mercadoria nos espaços a eles reservados. Uma liberdade relativa.
            Na verdade, não era comprar que me levava, às vezes, àquele ambiente, misto de comércio e natureza, mas um sentimento de harmonizar as duas coisas, o cheiro das verduras e frutas, o colorido dos vegetais, a simplicidade dos feirantes que chegava a ser de uma grosseria suave. Entende-se o sentido da liberdade quando se está preso. Havia, na verdade, mais de natureza do que de comércio, ou pelo menos mais de ruralidade em detrimento à urbanidade. Por toda parte um espetáculo aos olhos, a cada canto uma surpresa como se as frutas também olhassem os homens.
            Deixei-me entreter pelo passeio, então, com esse espírito de me libertar da necessidade de comprar fosse o que fosse. Aliás, trazia o desejo mesmo de negar os paradigmas consumistas. Vi, então, sentando a um canto, um homem robusto, vestido simplesmente, entalhando um pedaço de madeira de forma circular como um cabo de ferramenta. As mãos, de uma agilidade incrível, parecem que se moviam desarticuladas do resto do corpo. Ao verificar o quadro todo notei, também, que o homem não olhava às próprias mãos, como se elas soubessem o que fazer sozinhas. Aliás, apesar da manhã radiosa havia pouca luz naquele canto, dada à particularidade da construção. Não vou entrar em detalhes, porque não quero um conto naturalista.
– Examine isto?
Assustei-me. Era um jovem barbudo que me falava. Tinha gentileza nos olhos e uma pequena escultura nas mãos. Era uma imagem de Jesus.
– Foi você que entalhou?
– Não, eu somente a pintei. O entalhe é de Bart. E me apontou o homem de mãos ágeis.
A pequena imagem de Jesus era um trabalho de uma precisão impressionante.
O jovem barbudo, com gentileza nos olhos, não estava mais ao meu lado. Aproximei-me então de Bart para conversar, mas não cheguei a dizer nada e ele simplesmente ignorou minha presença, envolvido no que estava fazendo. Ao seu lado havia outra escultura, era esta somente do rosto de Jesus, uma espécie de máscara sem nenhuma pintura.
Bem, eu nem sei dizer por que associei aquela imagem também a Jesus, porque não havia nada em comum com a figura europeizada, consagrada pelos renascentistas, que somos acostumados a entender como sendo o rosto de um judeu, submetido ao escaldante sol da Galileia. Tomei-a nas mãos. Havia alguma coisa de rusticidade, que transcendia a própria imagem e dava àquele Cristo um ar quixotesco e apaixonado. E me veio um sentimento de calma e desespero ao mesmo tempo. Não sei quanto tempo fiquei ali, com a pequena máscara nas mãos, apreciando os contornos duros. Lembrei-me das imagens barrocas do Aleijadinho, mas nesta havia um elemento de simplicidade que captava a dor de um Cristo que, talvez, não teria o consolo da paz eterna, que trouxesse em si toda a tragédia humana do desespero da busca. Não havia a tradicional mansidão no olhar, mas uma profunda perturbação. Muitos anos depois, a imagem daquela máscara penetraria na minha alma e se tornaria verdadeiramente inspiradora da vida e aquele domingo inesquecível.
– Então, vai levar? - Perguntou-se o jovem barbudo.
– Eu queria essa máscara.
– Ainda não está terminada.
– Mas eu não posso compra-la assim mesmo, sem que esteja terminada.
Fiquei sem resposta.
– Este escultor enxerga para além dos olhos - argumentei, tentando justificar o meu desejo de comprar a máscara.
E o moço que parecia o empresário do escultor respondeu, para meu espanto:

– Sim, meu amigo, ele é cego.

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