Assumira o
hábito dos passeios noturnos para jantar. Apesar de vegetariano desde tenra
idade, caminhava, poucas quadras, ao cair da tarde, carregando uma pequena
embalagem de plástico, até um restaurante cuja especialidade era carne. Carne
assada. No caso, em uma churrasqueira, destas manuais, que ficava na calçada do
estabelecimento e convidava, pelo cheiro, os clientes do bairro periférico a
apreciarem a iguaria. Bem ou pouco passado, simples ou completo. A modalidade
simples consistia, além de seis a oito pequenos pedaços de carne num espeto, em
dois ou três pedaços de mandioca cozida. Quem optasse pelo completo teria também, além da mandioca,
uma porção de arroz, a farofa (farinha temperada) e o que chamavam vinagrete
(tomate picado e cebola, temperados no vinagre). Bem, todos conhecemos este
tipo de estabelecimento. Demoro-me aqui contando os detalhes, porque meu texto
pode sobreviver ao tempo, dando sentido a tal explicação.
Era
um homem formal de práticas habituais. Magro, alto, sóbrio e elegante, na
modéstia das suas roupas baratas. O garçom já sabia das preferências do discreto
freguês até ao ponto de dispensar o pedido: “o de sempre”. Chamava-o de doutor.
José era o seu nome. O garçom não sabia. Talvez poucos soubessem. Muito cedo
proibiu com natural autoridade que o chamassem de Zezinho. Era José,
argumentava. O estranhamento foi geral. O próprio pai reagiu com dificuldade,
mas acatou a ordem do filho adolescente. Fora o Padre que escorregará no
tratamento e o chamara de Josezinho. Ele, por fim, quase sorriu. Ficou. Era o
José. E quando alguém perguntava “que José” levantava-se o coro: “o Josezinho”.
“O
de sempre” de Josezinho era o “completo”: carne, arroz, mandioca e a salada de
tomate com cebola. Dispensava a farofa. Guardava a carne numa pequena embalagem
que trazia consigo e comia os demais ingredientes com a morosidade de um lorde,
mastigando ritmadamente. Ao terminar a refeição, o garçom trazia-lhe água em um
copo grande que ele não bebia nem a metade. Era sempre assim. Depois saia, se
acomodava num banco da praça em frente ao estabelecimento e abria a pequena
embalagem.
Josezinho
casará ainda aos 18 anos. Ela tinha 14 e um sorriso de enternecer as pedras.
Quando a sogra não reconheceu o rosto da filha sentiu que o casamento acabara e
tratou de conformar a consciência moral dos envolvidos. Josezinho não fez
alarde e arrumou outra casa para morar. Ela dispensou ajuda e voltou para a companhia
dos pais. Ele, por fim, ficou na casinha que perdeu o cheiro de lavanda para o
de papel velho.
Josezinho
não demonstrou interesse por outra mulher nos anos que se seguiram e a jovem
esposa do casamento desfeito, por vezes, chorava de saudade causando
perplexidade geral. Quando o pai o visitava evitava falar no assunto, bem como
o dono do escritório de contabilidade onde trabalhara desde sempre.
Desprendia
cheiro de carne assada da pequena embalagem e não se passava muito tempo até
que um cachorro, enxotado pelo restaurante viesse rodear o contador e comer os
pequenos pedaços de carne.
Josezinho
cuidava de guardar a embalagem para jogá-la, adequadamente, no lixo e insinuava
fazer um carinho no eventual cachorro faminto. Por vezes conseguia e, ainda, companhia
para o retorno a sua casa, mas o convidado nunca ficava.
Achava
obscena a ideia de comprar um cão e fazê-lo prisioneiro em seu quintal.
Ganhara, certa ocasião, um filhote de raça indefinida. Lépido e fagueiro.
Perdeu-o como à esposa, sem que jamais o visse depois. Aquela ainda via, na
Igreja e, às vezes, acidentalmente na rua. Quem o observasse atentamente
perceberia nele traços de desconforto quando ela se fez acompanhada. Passou a evitar
olhá-la, bem como fugia a um eventual cumprimento. O outro até que era parecido
com ele, mas sorria aos quatro ventos.
As
noite de Josezinho, depois do jantar, reduziam-se à leituras do Livro Sagrado e
clássicos da literatura universal. Não aprovava os programas de televisão,
salvo a Missa do Galo. Um dia se pegou rindo quando assistia um desses
programas de auditório. Foi-lhe, sem que eu saiba dizer a razão, o indicativo
moral de que não deveria se deixar levar por tal leviandade.
Josezinho não
sorria. Permitia-se, no entanto, a se demorar no olhar o que lhe dava uma
combinação simpática ao rosto comprido. Não se comprometia nos comentários
quando se via obrigado a expressar sua opinião. Nas reuniões familiares e nos
encontros inevitáveis com amigos e conhecidos que não deixavam de estima-lo
procedia com natural simplicidade e discreta autoridade.
Quando ela se
casou com o sorridente rapaz, que mencionei faz pouco, ele não deixou escapar
nenhuma inquietação se é que sentiu alguma, mas voltou cedo para casa,
acomodou-se em sua poltrona de leitura e ficou ali por horas: o olhar parado na
estante de livros sem que se decidisse por nenhum.
Foi num
outubro que Josezinho morreu. Tinha pouco mais de quarenta anos. Jantará como
sempre, como sempre recolherá os pedaços de carne na embalagem de isopor e
sentará na praça, no mesmo banco. Foi ali que se sentiu mal e foi conduzido ao
Pronto-Socorro, aonde chegou ainda com vida. “Um ataque fulminante” resumiu o
médico de plantão. A embalagem com carne ficou sobre o banco.
Durante o
enterro, o garçom de sempre conversou com o pai sobre um atropelamento ocorrido
pouco antes do enfarte do filho. Fora um cachorro, frequentador indesejado do
restaurante que atravessava a rua na direção de Josezinho. O contador teria
levado a mão ao peito no preciso momento. O pai não entendeu, apesar de saber
do estranho amor de Josezinho pelos cães que afinal nunca tivera nenhum de seu.
O garçom contou ainda que correu ao encontro dele e presenciou um sorriso
do contador, como nunca virá, no momento contundente.
Dizem que as
coisas fazem sentido no momento da morte. Não sei.
Ela recebeu da
mãe de Josezinho uma caixa de madeira, com frascos de lavanda, que fora
encontrada bem escondida no velho guarda-roupa do casal. Junto havia uma carta
acomodada em sóbrio envelope branco. Ela abriu a carta. Estava trêmula. Antes
de ler, ainda, guardou com cuidado a caixa na estante de madeira, com poucos
livros, que tinha na sala. Leu. Não pode segurar uma lágrima teimosa, mas, ao
mesmo tempo, sorriu como fazia nos bons tempos do início do casamento.
Lindo conto. Achei Jozezinho muito próximo.
ResponderExcluirFico feliz que tenha gostado.
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